Os Daft Punk conseguiram a proeza de soarem a si mesmos sem, no entanto, se parecerem demasiado consigo próprios. Random Access Memories é atípico para o grupo, pois muito dificilmente se pode alegar que isto seja uma divagação pelo house, ou um álbum de música eletrónica de dança, rico em batidas e ritmos frenéticos. Esqueçam-se clássicos como “Da Funk”, “Around the World”, “One More Time” ou “Technologic”. Há, de facto, muito pouco dessa marca ‘daftpunkiana’ neste novo projeto.


Paradoxalmente, não seriam precisos muitos minutos de reprodução para percebermos quem estaria por detrás deste álbum, caso os ficheiros áudio nos fossem apresentados sem metadados ou o disco nos chegasse às mãos sem capa. Há, em primeiro lugar, aqueles vocoders (vulgo, robôs a cantar) que não enganam ninguém, pois já são há muito uma das impressões digitais do duo parisiense.

Depois, mais subtilmente, encontramos na influência de nomes como Nile Rodgers (homem dos Chic) aqueles trejeitos do disco e do funk dos anos 70 (bem como de alguma pop na aurora dos 80) em que os Daft Punk sempre souberam pegar (particularmente na odisseia disco/house de 2001 que foi Discovery), mas que agora nos aparecem sob uma forma bem menos processada e mais próxima das raízes. Em resumo: ficaram de fora as modernices, permaneceram as influências – o resultado continua a ser Daft Punk. E é exatamente a isto que eles soariam se as leis do Código da Estrada tivessem imposto, já em 1997, um limite no uso da caixa de ritmos ou dos samples.

 

Random Access Memories, tal como parte do seu nome sugere, é uma expedição pelas autoestradas da nostalgia. Essa chave de ignição que é “Give Life Back to Music” denuncia-nos a bem explícita ode ao passado. E é aqui que os fãs da velha guarda travam o carro para se perguntar o que raio aconteceu à dupla que fazia música eletrónica. A resposta – mal ajustamos o volume do autorrádio – é que Thomas Bangalter e Guy-Manuel de Homem-Christo nunca saíram deste lugar, onde foram buscar as influências e acrescentar a sua marca. Mas claro que os colaboradores no assento traseiro do automóvel também poderão ter ajudado a construir o novo rumo.

Senão vejamos: para além de Nile Rodgers, cujo dedo e guitarra são evidentes em vários temas do álbum, temos ainda gente como Julian Casablancas, que traz um momento de rock (com a estética oitentista que reconhecemos de Comedown Machine, novo disco dos The Strokes) e uma letra mais elaborada sobre esse eterno tema que é o afeto em “Instant Crush”, um dos melhores refrões e pontos de passagem de Random Access Memories. Já Panda Bear, voz dos Animal Collective, transforma “Doin’ it Right” num tema muito seu, sem que os vocoders a repetir o título consigam tirar protagonismo ao convidado, neste bom exercício de pop melancólica.

Mas nem os parceiros mais contemporâneos conseguem fazer dissipar a ideia de que se não fosse pela produção modernissimamente polida, os mais distraídos julgariam que o álbum pertenceria a outra década. Até porque os flirts com esse passado em que o sintetizador (aqui rei e senhor) se emancipou e surgiu como o ‘som do futuro’ (palavras de Moroder) são constantes, com resultados diversos. As duas paragens que se fazem na estação de serviço – momentos calmos reservados à tristeza – oscilam entre o banal e o tolo (“The Game ofLove” nem em Discovery caberia) ou o engraçado e o respeitável (“Within” é um belo momento de pop sem peneiras, comChilly Gonzalez a dar uma majestosa intervenção ao piano enquanto um robô agoniza em falsete!). Já esse ruminar pela estrada ao pôr-do-sol que é “Beyond”, uma canção pop com vestígios de soul cantada por vocalizações robotizadas, tem o mérito de ficar no meio-termo.

 

Enquanto isso, do lado mais acelerado da viagem, onde o carro se coloca na faixa mais à esquerda da via rápida, temos “Giorgio by Moroder”, um dos momentos mais arrojados de Random Access Memories. O exercício, que começa com a narração de alguns detalhes autobiográficos desse grande nome do disco sound, cedo se transforma num desenfreado devaneio onde os sintetizadores se insinuamem frenesim, como que alegando terem a capacidade para ultrapassar o prazo de validade. Em seu encalço, e com pouca distância de segurança, vêm os violinos da epicidade, a guitarra elétrica e uma erupção de bateria. O resultado, como se pode imaginar, é um dos pontos mais altos e memoráveis dos Daft Punk versão 2013.Também rico em adrenalina, embora nunca chegando a semelhante píncaro, temos o instrumental “Contact”, a fechar com nota de prata esta viagem de 74 minutos.

Claro está que num percurso tão longo seria difícil falar-se numa travessia sem os seus momentos de tédio. “Motherboard”, por exemplo, são os Daft Punk em puro piloto automático, isto é, a divagar no estúdio sem um propósito particularmente assinalável e é um dos poucos casos em que uma faixa mais fraca desrespeitou a regra geral de cedência de passagem e acabou por entrar no álbum à mesma. Outras vezes, as canções esticam-se um bocadinho mais do que o desejável, algo que em Daft Punkpode ser dito sobre quase todos os álbuns.

Mas antes de se dar a viagem por terminada, é preciso falar da via de abrandamento que nos retira, por momentos, da autoestrada: “Touch” é não só o momento mais magistral do disco, como a coisa mais curiosa que o duo francês compôs até hoje. A canção, que começa lenta e desfocada como um sonho, cedo se vai metamorfoseando, enquanto Paul Williams – o condutor de serviço – canta com a mesma dramaticidade que Roger Waters usou nos devaneios floydianos mais teatrais de The Final Cut ou The Wall. Talvez pela sua esquizofrénicaoscilação de géneros, ou pelo modo como os interlúdios, as prestações vocais e os clímax se vão sucedendo e misturando com coros e os violinos, “Touch” é a canção mais atípica e a mais gratificante de todo o álbum.

Por outro lado, sobre essa Las Vegas sonora que é “Get Lucky” resta pouca para se dizer. Viral, orelhuda e simples, como qualquer híper-êxito do século XXI tem de ser, constitui um dos momentos mais quentes do álbum e, claro, um dos mais memoráveis também. Se o exercício de disco moderno perdurará na mente coletiva do mesmo modo que “One More Time” ou “Around the World”, ainda é prematuro dizer-se, embora tudo indique que sim. Seja como for, o lugar no inevitável Bestof definitivo já ninguém lhe tira, pelo motivo mais óbvio. Da mesma família, mas um pouco mais aquém, fica o disco mais morno de “Lose Yourself to Dance”, que nem a euforia de Pharrell Williams (o mesmo galã do primeiro single) ou as guitarradas de Nile Rodgers conseguem resgatar. Ainda assim, o verão fica garantido com estes dois temas.

Em suma, o que os Daft Punk parecem propor neste novo Random Access Memories é uma viagem pelo som que desde há muito faz parte do seu imaginário e no qual tinham tocado, algo explicitamente, em Discovery (2001). Quem tiver esse como o seu disco preferido do grupo poderá facilmente arranjar uma ponte para Random Access Memories. Aqueles que, por outro lado, gostam do duo parisiense pela forma como este se apropriou da música house ficarão insatisfeitos, pois nada aqui remete para Homework (1997) ou para o trabalho feito em Human After All (2005), para além das vocalizações robotizadas, claro. Já os que nunca se dedicaram a ouvir Daft Punk têm aqui uma introdução curiosa, apenas por este ser o disco em que eles estarão mais perto das suas influências musicais do que do seu próprio passado.