A Andorinha e a Primavera: o Primeiro Festival de Vilar de Mouros
Circula na internet um relatório sobre o primeiro Festival de Vilar de Mouros redigido por um informador da PIDE/DGS. Era então primeiro-ministro Marcelo Caetano. Este festival ficaria reputado como o Woodstock português. O relatório é um documento precioso, pelo conteúdo e pela forma. Da leitura, depreende-se que os participantes no festival eram porcos, estavam famintos e andavam com cio. O autor, um “elemento informativo”, insiste nestas três teclas.
O purgatório acudiu à terra, junto às águas cristalinas do rio Coura, no coração do Minho, alfobre de costumes ancestrais. Justifica-se, portanto, tamanha indignação vertida em letras. O Woodstock made in Portugal despertou alergias. A “praga de gafanhotos” que “se lançou sobre as hortas próximas” ainda perdura na memória local. E os cobertores, “votados à promiscuidade”, eram um luxo momentâneo, uma espécie de micro território a defender com todas as artes e a partilhar sem reticências. Este relatório configura um exemplo de discurso da má-língua, sobre um festival que se eleva como uma andorinha solitária da “primavera marcelista”.
Manfred Mann’s Earth Band, dia 7 de Agosto, e Elton John, dia 8, constavam do cartaz, bem como várias bandas portuguesas, entre as quais Psico e Quarteto 1111. No fim-de-semana seguinte, atuavam, talvez para compensar, Amália Rodrigues e o Duo Ouro Negro. Elton John era a estrela, mas quem deu espetáculo foram os Manfred Mann. Como resume Tozé Brito, do Quarteto 1111, “Manfred Mann foi a apoteose”. Particularmente apreciados em Portugal, os Manfred Mann eram, em 1971, uma banda consagrada. A canção MIghty Queen (1968), escrita por Bob Dylan, esteve várias semanas no topo das tabelas (é a música de fundo deste vídeo dedicado ao festival de Vilar de Mouros de 1971). Tive o ensejo de assistir, oito anos mais tarde, em 1979, a um concerto dos Manfred Mann em Paris. Outros mundos, outros tempos, outros ventos. Interpretação, ambiente e público, tudo impecável. Nenhuma sombra de “promiscuidade”, “indecência” ou “multidão faminta”. Ninguém “se aliviou no recinto do espetáculo” e as hortas vizinhas foram preservadas. Nem a mínima suspeita de escribas dos serviços secretos a registar a “imundice” do público. Um cobertor, no entanto, teria dado jeito. Em Paris, enquanto os Manfred Mann tocavam, Dionísio ressonava.
“Informação nº 226-C.I.(I)
Distribuição Presidência do Conselho, Ministério do interior, Ministério da Educação Nacional
Assunto: Festival de música “Pop” em Vilar de Mouros
A seguir se transcreve o texto de uma informação redigida por um nosso elemento informativo que assistiu ao “festival” em questão, que teve lugar nos dias 7 e 8 do corrente, a qual se reproduz na íntegra, para não alterar os detalhes que foram alvo do seu espírito de observação:
“Dias antes do festival, foram distribuídos, nas estradas do País e nas estradas espanholas de passagem de França para Portugal, panfletos pedindo aos automobilistas que dessem boleias aos indivíduos que iam ver o festival.
No 1º dia, o espectáculo começou às 18h00 e prolongou-se até às 4 da manhã.
Ao anoitecer, o organizador, um tal Barge, anunciou que tinham sido vendidos 20 mil bilhetes (a 50$00 cada).
Esperavam vender 50 mil bilhetes para cobrir as despesas, que seriam aproximadamente a 2.500 contos.
Diziam que tiveram de mandar vir o conjunto Manfred Mann de Inglaterra, mas parece que estava no Algarve, e por isso, a despesa com eles não foi tão grande como parecia.
Um dos cantores, Elton John, causou desde o começo má impressão, com os seus modos soberbos e as suas exigências: carro de luxo para as deslocações, quartos de luxo para os acompanhantes e guarda-costas, etc.
O recinto do festival era uma clareira cercada de eucaliptos, com um taipal à volta e uma grade de arame do lado do ribeiro.
Na noite de 7 estavam muitos milhares de pessoas e muita gente dormiu ali mesmo, embrulhada em cobertores e na maior promiscuidade.
Entre outros havia:
crianças de olhar parado indiferentes a tudo
grupos de homens, de mão na mão, a dançar de roda
um rapaz deitado, com as calças abaixadas no trazeiro
um sujeito tão drogado que teve de ser levado em braços, com rigidez nos músculos
relações sexuais entre 2 pares, todos debaixo do mesmo cobertor na zona mais iluminada
sujeitos que corriam aos gritos para todos os lados
bichas enormes a comprar laranjadas e esperando a vez nas retretes (havia 7 ou 8 provisórias) mas apesar disso, houve quem se aliviasse no recinto do espectáculo.
porcaria de todo o género no chão (restos de comida, lama, urina) e pessoas deitadas nas proximidades
Viam-se algumas bandeiras. Uma vermelha com uma mão amarela aberta no meio (um dos símbolos usados na América pelos anarquistas); outra branca, com a inscrição “somos do Porto” com raios a vermelho e uma estrela preta.
A população da aldeia, e de toda a região, até Viana do Castelo, a uns 30 km de distância, estava revoltada contra os “cabeludos” e alguns até gritavam de longe ao passar “vai trabalhar”. Foram vistos alguns a comer com as mãos e a limparem os dedos à cabeleira.
Viam-se cenas indecentes na via pública, atrás dos arbustos e à beira da estrada.
Em Viana do Castelo dizia-se que os “hippies” tinham comprado agulhas e seringas nas farmácias da cidade.
Havia muitos estudantes de Coimbra, e outros que talvez fossem de Lisboa ou do Porto. Alguns passaram a noite em Viana do Castelo em pensões, e viam-se alguns de muito mau aspecto, parece que vindos de Lisboa, que ficaram numa pensão.
Houve gritos de Angola é… (qualquer coisa) durante a actuação do conjunto Manfred Mann (de que faz parte um comunista declarado, crê-se que chamado Hugg).
Fora do recinto, junto do rio e de uma capela, havia muitas tendas montadas e gente a dormir encostada a árvores ou muros e embrulhada em cobertores.
Houve grande confusão junto às portas de entrada.
Havia quatro bilheteiras em funcionamento permanente e muito trânsito.
Toda aquela multidão de famintos, sem recursos para adquirir géneros alimentíocios indispensáveis, como se de uma praga de gafanhotos se tratasse, se lançou sobre as hortas próximas colhendo batatas e outros produtos hortícolas, causando assim, grandes contrariedades aos seus proprietários, muitos deles de débeis recursos económicos.
26-8-71″