Muitos são os autores que romanceiam o início da sua carreira. Apesar de um ávido leitor enquanto adolescente,Murakami demorou a reconhecer em si o talento necessário para se afirmar como tal. É hoje o japonês mais lido em todo o mundo e o eterno candidato ao Nobel. Em Outubro (quinta-feira, dia 10) saberemos se, finalmente, será feita justiça.

Vidas parcas, mulheres misteriosas, poços, gatos e jazz. Muito jazz.

A decisão de escrever um livro? Essa foi tomada aos 29 anos, enquanto assistia a um jogo de basebol. Dono e gerente de um clube de Jazz na altura – o Peter Cat, projeto a que se lançou terminada a licenciatura em Estudos Teatrais – tinha até então uma vida pacata e monótona. Um negócio vulgar mas sustentável, que lhe permitia ouvir música o tempo todo. Mas, naquele dia, num banal jogo de basebol no Jingu Stadium teve a consciência de que seria capaz de escrever um livro.

Hear the Wind Sing (1979) foi o que resultou das horas sentado na mesa da sua cozinha depois de fechar o bar à espera que o sol nascesse. O sucesso, ainda que moderado, conduziu-o a Pinball, 1973 (1980) e a Em Busca do Carneiro Selvagem (1982). Os três livros formam aquilo que é tido como a “Trilogia do Rato”, já que são escritos em torno de uma misteriosa personagem com esse nome. Personagens solitárias, mulheres misteriosas, cocktails e narrativas que roçam sempre a linha do metafórico, deixando a famosa questão murakamiana no ar: “O que será que realmente queria ele dizer com isto?”

Apesar do sucesso que foi a trilogia – que atinge o seu auge com a atribuição do prémio Noma em 1982 – foi Norwegian Wood (1987) que atirou Murakami para o sucesso internacional. Apropriando-se do título da música dos Beatles, a preferida de uma das personagens, Murakami cria um drama amoroso que tem como pano de fundo as revoltas estudantis japonesas dos anos 60. A história, essa, é a de “Toru Watanabe”, alter ego de Murakami: um jovem universitário que trabalha numa loja de discos de vinil enquanto estuda e tem de conviver com o facto de o seu melhor amigo ter cometido suicídio durante a adolescência.

O crescente sucesso podia levá-lo a cair em fórmulas comerciais, sujando-lhe o estilo. Contudo, não foi o que aconteceu.

Histórias de homens com vidas banais, que vêm o seu mundo dar uma volta com o surgir de situações caricatas, continuaram a fazer de Murakami um autor único. Em destaque estará sempre Crónica do Pássaro de Corda (1995) – que o leva novamente ao reconhecimento interno com o Prémio Yomiuri e que conta a história de um homem de hábitos que vê a sua vida mudada por completo a partir do dia em que o seu gato desaparece. O livro, que a dado momento funde por completo a realidade com a fantasia, é também o primeiro em que Murakami decide tocar numa das mais negras páginas do Japão moderno: os crimes de guerra cometidos pela nação durante a ocupação da Manchúria.

 

Um dos grandes segredos para que se mantenha a vontade de ler um autor é saber reinventar-se.

Era até então a grande crítica a Murakami, os assuntos recorrentes. Muitos diziam começarem a fartar-se dos temas repetidos dos seus livros, da constante solidão dos personagens, e, para os mais românticos, a falta de paixão.

Murakami surpreende tudo e todos em 2009 com 1Q84 (2011), um romance dividido em 3 partes que calou as vozes mais críticas e que relata a história de amor de “Aomame”, uma instrutora de ginástica com um dom especial para matar sem deixar rasto usado para ajudar mulheres em situações de violência doméstica; e de “Tengo”, professor de matemática aspirante a escritor, que é convidado a reescrever um romance misterioso na qualidade de “ghost writer” (ou seja, reescrevendo o romance sem que o seu nome conste como autor). Mas o DNA murakamiano está lá, e na sua melhor vertente. Os dois são atirados para uma realidade alternativa, um mundo aparentemente igual ao qual viviam em 1984, mas com um conjunto de factos que deturpam a realidade até então conhecida. Bem-vindos a 1Q84, uma realidade com crisálidas de ar, um Grande Líder e duas luas. Um mundo com claros ecos na obra de George Orwell, 1984.

O mais recente livro editado no Japão chamar-se-á, na edição inglesa, Colorless Tsukuru Tazaki and His Years of Pilgrimage, e embora pouco possa ser adiantado para já, sabemos tratar-se da história de um homem que tenta ultrapassar o sentimento de perda e isolamento que estão há muito acumulados no seu coração. Ou seja, sem qualquer surpresa, cheira novamente a obra-prima.

 

Críticas internas – “Um japonês americanizado que escreve sobre nós”.

Não é pacífico dizer que Murakami é hoje o maior escritor japonês da atualidade, já que muitos vêm nos seus livros mais referências ao estilo de vida americano do que propriamente ao japonês. A viver fora do Japão desde 1986 e lecionando hoje em algumas das mais prestigiadas universidades americanas, recebe duras críticas por parte de alguns escritores japoneses. O maior opositor ao estilo de Murakami é Kenzaburo Oe, vencedor do prémio Nobel em 1994 e tido, para alguns, como o verdadeiro expoente máximo da literatura do país.

No entanto, talvez seja essa a maior virtude de Murakami. Optando sempre por uma visão crítica sobre o seu país, aborda frequentemente nos seus livros temas como a radicalização da sociedade japonesa ou as políticas nucleares do seu país. A quando do desastre nuclear de Fukushima, foi o primeiro a apontar o dedo aos japoneses por permitirem o uso da energia nuclear, já que, a seu ver, esse era «o segundo maior desastre nuclear na história recente do Japão». No entanto, desta vez não se tratava de «uma bomba deixada cair sobre a nação, mas sim um erro cometido pelas suas próprias mãos». Ao vencer o prémio literário internacional da Catalunha, no valor de 80 000 €, não hesitou em oferecer esse valor e dedicar o seu discurso às vítimas do terramoto de 11 de Março que foram afectadas pelo desastre nuclear.

 

O que diz ele quando fala sobre corrida

Apesar de serem os seus maiores prazeres, Murakami não é só música e literatura. Em Auto-retrato do Escritor enquanto Corredor de Fundo, o autor abre as portas à sua intimidade e desvenda a fórmula utilizada para poder escrever estes livros que tanto encantam milhares de leitores em todo o mundo como a crítica: Corrida.

Fumador há vários anos, Murakami decide mudar o seu estilo de vida sedentário e nada saudável logo após o início da sua carreira literária. Torna-se então um enorme entusiasta de maratona. E hoje considera serem esses momentos de treino matinal, bem como a enorme cultura de autodisciplina a que se sujeita para conseguir completar as provas que lhe permitem escrever os livros que escreve. E acredita piamente que o processo de escrita de um romance se assemelha perfeitamente a uma maratona.

Orgulha-se, por isso, de nunca ter ido a passo em nenhuma das provas em que participou. Espera, desta forma, que quando cruzar a sua última meta, esteja gravado na sua sepultura:

 

«Haruki Murakami

1949-20**

Escritor (e Corredor de Fundo)

Pelo menos nunca caminhou»

 

(E aqueles que conhecem a sua obra sabem que não se refere simplesmente às maratonas).