Comam sobre a erva

Despachai-vos

Um dia ou outro

A erva comerá sobre vós

(Jacques Prévert, Fatras, 1966)

 

Há uma geração, a reprovação era um chumbo ou uma raposa. Mas a língua não ficou queda. Não aprovado afirmava-se mais conveniente do que reprovado. Retido e não transitou pecavam, ambos, por défice de eufemismo. Nos nossos dias, o aluno não chumba, nem reprova, nem fica retido: não tem aproveitamento à disciplina (unidade curricular, no ensino superior). É comovedora a arte da classificação administrativa! A excelência é uma cruzada e a palavra, um farol ou uma cavalgadura.

Nos tempos de criança, um velho era um velho. Agora, na antecâmara da velhice, já não sei o que sou nem para onde vou. “Velhos são os trapos”. Idoso? Pessoa de idade? Sénior? Estou a envelhecer? A ganhar idade? Estou a ficar sénior? Uma vez reformado, provavelmente na quarta idade, espera-me a institucionalização e a universidade sénior. O mundo das palavras é assombroso. Dizem muito sobre nós. Somos inconstantes, rumo a uma excelência dependente. Mudam-se os tempos, mudam-se as palavras…

As novas designações cheiram a estrangeiro (senior, personne âgée, persona mayor).

Michel Crozier sustenta que não se muda a sociedade por decreto (On ne change pas la société par decret, Paris, Grasset, 1979). O que vale, sobremodo, para a língua. É verdade que as palavras, mesmo as fracas e as infelizes, comportam efeitos, nomeadamente ideológicos. A dança das palavras rodopia no carrocel do poder.

Aprecio o linguajar do poder, sobretudo quando se torna poético, alucinado por paradoxos e aporias. Os cortes salariais na função pública e nas empresas do sector público ajustam-se, mas na Tap e na Caixa Geral de Depósitos adaptam-se. Um coq-à-l’âne à altura dos melhores poetas medievas. Os salários da função pública ajustam-se a quê ou a quem? E uma vez que a adaptação engloba o ajustamento mais a assimilação, não seria mais pró-ativo que os hospitais, as escolas, os tribunais e as empresas também se empenhassem na dita adaptação?

Para além de se ajustar, os salários da função pública também convergem. Com quem? Com quê? O sector privado é referência que se desgastou. A resposta é ao mesmo tempo poética e bíblica: tal como uma maçã que cai de uma árvore converge com o chão, a função pública, como um anjo negro, despenha-se num abismo sem fundo à vista. Ajusta-se, converge, mas não se adapta. Palavras fracas? Palavras vazias? Língua de pau.