Rebaixamento
Enfrentar a crise e o défice sem recurso a uma política monetária é complicado. Sem hipótese de desvalorização da moeda, adota-se uma alternativa inovadora: produz-se o “equivalente” à desvalorização da moeda, passando o protagonismo do mercado para o Estado. Trata-se, na prática, de um reforço dos poderes governamentais que nem os keynesianos sonhariam. Este cenário presta-se a tentações.
A desvalorização real da moeda afeta a todos de igual modo: o dirigente de um grupo económico tanto como o desempregado, embora este último acabe por sofrer mais. Uma vez que o “equivalente a uma desvalorização monetária” passa a ser engendrado e engenhado pelo governo, por que não conceber uma “desvalorização” diferenciada e seletiva, “ciblada”? Uma discricionariedade de feição a que certas categorias de cidadãos se confrontem com uma “desvalorização” moderada e outras, com uma “desvalorização” “colossal”. Assim sucede em Portugal. À função pública cabe-lhe a fava.
Em quatro anos, a remuneração de uma hora de trabalho de muitos funcionários públicos cai mais de um terço. Rombo nunca antes visto, nem sequer imaginado. E não engloba o aumento dos impostos e dos serviços de Estado, ambos, presumivelmente, de incidência geral. O que justifica tamanha discriminação negativa? Será pecado? Será castigo? São os funcionários responsáveis, como se insinua, pela crise? Andaram a inventar dinheiro? Desfrutaram de simbioses parasitas com o Estado? Foram tomados pela febre dos investimentos públicos? É sabido que entre o diagnóstico e a terapia pode não existir uma ligação linear. Em termos de crise económica e financeira, normalmente, não paga nem quem a provocou, nem quem lucrou. O motivo da penalização da função pública é outro, nada tem a ver com a sua putativa responsabilidade na crise. Tão pouco se prende com a miragem da convergência com o sector privado. Ironicamente, a vida dá muitas voltas. Neste momento, há trabalhadores de uma empresa pública em vias de privatização satisfeitos por escapar aos cortes salariais anunciados para as empresas públicas. A razão dos cortes nos salários da função pública cabe numa folha de Excel. É contabilística. São cortes que têm efeito direto e imediato na despesa pública. Quanto à respetiva eficácia em termos do défice público, logo se verá. Podem advir efeitos perversos que, como já aconteceu, acabem por baralhar as contas.
O corte “colossal” na remuneração dos funcionários não se cinge a uma operação contabilística. Comporta um rebaixamento profissional e moral. Entramos no domínio do simbólico, mas o simbólico tem muita força. “It’s the symbolism, stupid!”. Existem serviços públicos, cuja eficiência depende, em parte, da boa vontade dos trabalhadores. Sem esta boa vontade, o desempenho e a qualidade ressentir-se-iam drasticamente. Isto é verdade nos hospitais, nos serviços sociais, nas escolas, nos tribunais, nas universidades… Mas a boa vontade não é à prova de injustiça. Resulta profundamente abalada. Como pode sentir-se o único corpo profissional que é, sem culpa formada, vítima das aflições do Estado? O simbólico pode revelar-se grave. Que seria, por exemplo, do ensino superior sem a boa vontade dos funcionários? Atente-se nas orientações de doutoramento e de mestrado, nos júris de provas e de concursos, nos cargos de gestão, na internacionalização, nos encontros científicos, na prestação de serviços à comunidade… Há quem num fim-de-semana, escreva uma crónica, receba um doutorando, reveja dois relatórios, um para uma agência governamental, o outro para uma prestação de serviços à comunidade, e, nos entretantos, ainda dê um jeito a uma dissertação de mestrado.
Vem-me à memória um anúncio batido: “Eu é que não sou parvo”. Pois, por estas bandas, avolumam-se as dúvidas. O que vale é que a estupidez, como a “vã glória de mandar”, não é eterna.