Corpos comunicantes. A educação pelos sentidos no Mosteiro de Tibães – I
O corpo fala! Toda a gente sabe. Ray Birdwhistell insistiu nesta tecla em 1952 (Introduction to Kinesics). O corpo fala por todo o lado: cotovelos, pele, unhas, pelos, olhos, orifícios e poros. Desde a ponta dos pés até à ponta dos cabelos. Mesmo calado, o corpo consegue ser o nosso maior “banco de símbolos” (Philippe LeBreton). Não existe nicho corporal que não esteja sobreinvestido de sentido. Até fantasias como os humores, alvo, durante séculos, de sangrias medicamente assistidas.
O corpo é o “pivô do mundo” (Maurice Merleau-Ponty), a matriz com que sentimos e dizemos o mundo, a cultura e a identidade. O corpo nunca falou tanto como na atualidade. Vocábulos indescritíveis povoam a cave e o sótão do nosso imaginário: as células, o complexo de Golgi, as mitocôndrias, os retículos endoplasmáticos, os lisossomas, o citoesqueleto… E os genes: MKRN3, IL4, CAPN10, BRCA2, PSEN1… Graças às nanotecnologias, o corpo está em permanente upgrade semiótico. Com a ajuda da psicanálise, da antropologia, da sociologia… Não há nada mais nosso do que o corpo. Tentamos dominá-lo desde a nascença. Escapa, mesmo assim, ao nosso controlo. Inconveniente, pronuncia-se sem autorização: a face, oráculo da comunicação não verbal, desfaz-se em informação clandestina. O resto, também! A eloquência corporal chega a ser incómoda. Na pior das hipóteses, o corpo funciona como suporte amplificador de estigmas. O estigma não se resume a uma marca, boa ou má. O estigma é uma parte que contagia e polui o todo (Erving Goffman). A barriga, por discreta que seja, precede o barrigudo. Quem sofre de uma disformidade nos ossos da parte superior da coluna vertebral é um corcunda, quem tem deficiência nos membros inferiores é um coxo, quem não vê é um cego… Nestes casos, a comunicação é “terrorista” (Henri Lefebvre). A contaminação, a colonização do todo pela parte, é de tal ordem que insistimos em gritar aos ouvidos dos cegos. Um barrigudo, um corcunda, um coxo, um cego, nenhum deles se resume a um único atributo, por mais impactante que seja. Semáforo da desgraça, o corpo é a principal alcoviteira das deficiências que nos oprimem. Mas nós também moldamos, à nossa maneira, o corpo: besuntamo-lo com cremes, asfixiamo-lo com pós, enfeitamo-lo com cosméticos, sufocamo-lo com corpetes, drenamo-lo com lipoaspirações, inflamo-lo com silicone, depilamo-lo até à raiz… O corpo é uma ilusão palpável.
O corpo comunica, mesmo quando arde ou explode.
O corpo interage com outros corpos. O corpo dialoga, sem avisar, quando se afasta ou se aproxima, se endireita ou se dobra, fixa ou desvia o olhar, dá a face ou vira as costas, enche ou esvazia o peito, toca ou se esquiva, espezinha ou pega ao colo, enruga a testa, aperta os lábios ou torce o nariz… O corpo e a mente desencontram-se frequentemente. Vem a propósito um exemplo de Edward T. Hall: no decurso de um congresso científico, um norte-americano e um mexicano encetam conversa. Estão no extremo de um corredor, o mexicano de costas para a parede. Poucos minutos depois, estão no lado oposto do corredor. Porquê? Os corpos também sabem dançar o tango. A “esfera de intimidade” (Georg Simmel) do norte-americano assevera-se maior do que a do mexicano. Sentindo a distância entre corpos excessiva, o mexicano aproxima-se; a distância torna-se, agora, escassa para o norte-americano, que recua. Palmilham, deste modo, todo o corredor. O corpo, tal como coração, “tem razões que a própria razão desconhece” (Blaise Pascal).
“É impossível não comunicar”, este é o primeiro axioma de Paul Watzlawick. Tudo comunica: as palavras, os gestos, as posturas, os objetos e os contextos. As posturas comunicam, através das posições e das disposições (Pierre Bourdieu). No mosteiro de Tibães, um frade castigado come no refeitório mas no chão. Trata-se de uma sedimentação simbólica que resgata a ordem da comunidade e a ordem do mundo: rebaixamento, marginalização, reparação. Que os objetos falam é um truísmo. Como reza o provérbio, “o hábito não faz o monge, mas fá-lo parecer de longe”. O hábito (objeto) fala à distância. Na igreja do mosteiro de Tibães, o espaço (contexto) composto pelo órgão e pelo coro alto constitui um bom exemplo de “catequese pela imagem”, aposta da Contra-Reforma que remonta, pelo menos, à Idade Média (por volta do ano 600, Gregório o Grande afirma que “as pinturas são a leitura daqueles que não sabem as letras”). Na base, o órgão é suportado por carrancas e sátiros atlantes, metade homem, metade bode; no topo, uma escultura com as três virtudes teologais, fé, esperança e caridade. No coro alto, um cadeiral com três níveis. Em cada misericórdia (assento), uma máscara. Na primeira fila, a mais baixa, as máscaras são de animais. Na segunda fila, seres humanos de diferentes raças. Na terceira fila, a cadeira reservada ao abade. Consoante a categoria, assim se sentavam os monges. Os olhos, enlevados, continuam a erguer-se. Nas paredes, quadros com os passos da vida de S. Bento. Culminam, junto ao teto, com o encontro de S. Bento e Sta. Escolástica com a Santíssima Trindade. O órgão e o coro alto convidam-nos a sentir o mundo como uma espécie de escada que começa, na terra, senão no inferno, com grotescos demoníacos e acaba no céu, no paraíso, com a Santíssima Trindade.
Continua!
Não perca, dentro de dias, a segunda parte de “Corpos comunicantes. A educação pelos sentidos no Mosteiro de Tibães”!
(com a colaboração de Paulo Oliveira)