Sem sombra de dúvidas, a produção literária, mesmo em tempos de crise, manteve-se estável e em grande forma, tanto pelas traduções que acabam de nos chegar, como também pelo nível da produção local – uma nota de destaque para a poesia que lançou, neste ano de 2013, novos promissores poetas e, também, no seu encalço, presenciou a volta de alguns clássicos. O critério aqui utilizado, além da habitual subjetividade, foi o de tentar realçar livros que de algum modo se afiguraram únicos dentro do cenário atual. Com isso quero dizer que uma tradução inédita de um autor nunca antes publicado em português (Flann O’Brien) mereceu mais destaque do que a mais nova coletânea de contos ou o romance de um autor já conhecido do público (Alice Monroe ou J. M. Coetzee).

Para já, o que sobressai, depois de observada a lista, é a presença da editora Tinta-da-China cada vez mais consolidada na sua posição de grande catalisadora de novas produções (com a coleção poesia, coordenada por Pedro Mexia) e de produtora de obras essenciais (com as presentes edições de Fernando Pessoa e o dicionário de Alberto Manguel). Bom ano e boas leituras!

 

1.  “Servidões” de Herberto Helder (Assírio & Alvim)

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Eleger Herberto Helder para o topo da lista é um daqueles lugares comuns da crítica literária. Quando se tem medo de “errar”, mais vale arriscar no alvo certo e nomes como os de Fernando Pessoa, Camões, António Ramos Rosa e o do próprio Herberto oferecem a segurança de que pelo menos nenhuma escolha estapafúrdia estará sendo feita. Entretanto, neste caso, no presente ano da graça de 2013, nunca se fez tanto sentido garantir ao velho vate madeirense a primazia do topo da lista.

Depois de alguns anos de silêncio, ou melhor, desde o seu “A faca não corta o fogo (2008) que não tínhamos notícia do poeta e eis que nos surge este portento poético que se chama “Servidões. Lá está contido ainda o viço e a seiva poética deste aedo que nos acostumou sempre com o mais alto voo. O poder de descrever em imagens a matéria tenra dos sentidos está lá de corpo inteiro, como disse o poeta em “como se atira um dardo com o corpo todo/ com a eternidade em não mais que nada/ e depois a abolição do tempo,/ e então o que respira no corpo passa à vara”. Excelente.

 

2.  “Livro do Desassossego” de Fernando Pessoa (Tinta-da-China)

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E aqui estamos novamente a eleger um clássico para o topo da lista, mas é difícil evitar esta edição integral e revisada do livreiro Bernardo Soares. O Livro do Desassossego não é somente a obra-prima de Fernando Pessoa, como nas mãos de Jerónimo Pizarro recebe o devido tratamento na fixação do cânone e na interpretação do texto. Sem sombra de dúvidas, o trabalho de Pizarro tem trazido grande luz sobre o Pessoa tanto na reorganização do texto, basta comparar as diferentes versões existentes no mercado para perceber a relevância desse trabalho de consolidação, como na abundância de notas de rodapé que consegue reunir para clarificar passagens, por si só densas. Este trabalho, que contou com a revisão de raiz dos originais da obra, merece um lugar cativo na biblioteca de qualquer leitor português ou apreciador de literatura em geral. Já não é preciso elogiar o trabalho de luxo da Tinta-da-China na preparação do livro, em capa dura e com excelente encadernação.

“Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros, e a poesia ou literatura uma borboleta que, poisando-me na cabeça, me torne tanto mais ridículo quanto maior for a sua própria beleza.

 

3.  “Cinza” de Rosa Oliveira (Tinta-da-China)

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Não é fácil ser leitor de poesia, mas de igual modo não o é fácil ser poeta. Tanto pela imensa bagagem artística que precede a qualquer aspirante ou poeta atual, como também pelo fato de que mesmo os que por aí se aventuram não encontram morada fácil. Rosa Oliveira, talvez ciente disto, esperou 50 anos para publicar o seu primeiro livro que agora vem a lume e se chama Cinza. Os poemas “longo como o sofrimento” são frutos da experiência e da maturidade. Não se consegue deixar de entrever o constante trabalho que foi polir e reduzir ao essencial estes versos. A espera valeu-nos uma surpresa e somos compensados com a leitura de textos em completa sintonia com a tradição como com o mundo que nos cerca. Alguns destes poemas certamente que merecerão constar em uma antologia das melhores poesias que se fizer no futuro, sobre a década de 10 do século XXI. E apesar do que deixa entrever o título, Cinza é tudo menos apagado e morno; é chama intensa consubstanciada em versos, versos estes que podem ser lidos como vestígios do incêndio que assombrou a poeta.

 

4.  “Dicionário de Lugares Imaginários” de  Alberto Manguel e Gianni Guadalupi (Tinta-da-China)

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Uma obra de referência para qualquer geração de leitores, Dicionário de Lugares Imaginários é uma compilação, à guisa de dicionário, de todos os lugares imaginários criados pela literatura de todos os séculos. Esta tarefa hercúlea tem tanto de ambiciosa quanto consegue oferecer. Nunca mais será aquele o leitor que terá dúvidas sobre onde fica Aiaia ou mesmo sobre como está organizada, num mapa completo, as terras de Mordor. Sem distinção entre alta e baixa literatura, Alberto Manguel um leitor inveterado, mostra toda a sua erudição ao discorrer sobre os locais que as leituras o aportaram. Todas as entradas estão seguidas de referências, para o caso de posterior consulta da obra sugerida na sua totalidade. No livro ainda consta um utilíssimo índice de autores, onde todos os lugares referidos estão agrupados por escritores. Este livro era uma lacuna grande no mercado livreiro português que agora foi sanada. A edição da Tinta-da-China conferiu a obra a seriedade que merecia e nos presenteou com uma edição que não poupa nas ilustrações e com uma impressão em papel bíblia que ativará certamente na memória de muitos leitores o carácter de sagrado.

 

5.  “Ulisses” de James Joyce  (Relógio D’Água)

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Este chegou já o ano ia no seu fim, mas ainda assim com tempo suficiente para constar na lista de melhores livros do ano. Esta nova edição de Ulisses, o clássico moderno de James Joyce, veio trazer ao leitor de língua portuguesa, especialmente aos portugueses, uma tradução que facilitará em muito a compreensão e apreciação da obra. É certo que a chegada desta nova edição não se configura por assim dizer como uma novidade, mas se observarmos atentamente que das cinco traduções existentes em português, quatro são brasileiras – com uma sintaxe não muito amigável para o leitor lusitano – e somente uma em português europeu, datada de 1984, de João-Palma Ferreira, compreende-se porque esta nova tradução de Jorge Vaz de Carvalho faz todo o sentido. Se levarmos em conta de que cada geração deve ter a sua própria tradução de clássicos universais da literatura, esta nova edição das desventuras de Bloom já se fazia mais do que atrasada.

 

6.  “Diário da Queda” de Michel Laub  (Tinta-da-China)

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Em algum momento do século passado a literatura brasileira entrou num completo ostracismo na realidade portuguesa. Não só se tornou raro o contato com os novos escritores, e aqui não estamos a nos referir a personalidades como Jorge Amado ou Paulo Coelho, como quase nada da nova lavra era por aqui publicado. Não saberei dizer se o recente boom de atenção sobre a literatura brasileira foi impulsionado pela Feira do livro de Frankfurt e pelo grande crescimento económico do país, mas é na esteira deste interesse que nos sai agora Diário da Queda. Um excelente livro do jornalista gaúcho Michel Laub sobre as memórias da imigração judia no Brasil e a Segunda Guerra Mundial. Uma história entrelaçada em três personagens e uma doença, o Alzheimer. Uma narrativa em espirais sufocantes, contada na primeira pessoa e cheia de personalidade fizeram de Michel Laub um dos nomes mais promissores do romance brasileiro, tendo por isso sido escolhido para integrar a edição da Granta Brasil com os novos melhores escritores, abaixo dos 40 anos. A não se perder de vista.

 

7.  “Uma Caneca de Tinta Irlandesa” de Flann O’Brien  (Cavalo de Ferro)

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É muito fácil esquecermos dos livros que são publicados no início do ano. Principalmente quando saem do prelo sem pompa ou grande divulgação. A editora Cavalo de Ferro realizou a primeira tradução para língua portuguesa de um escritor que é por muitos considerados o sucessor de James Joyce, Flann O’Brien, pseudônimo de Brien O’Nolan. Considerado pela revista Time como um dos 100 melhores romances do século passado, é de se estranhar que nunca tenha existido uma tradução disponível sobre ele no mercado (português e brasileiro!) durante anos. A história? É difícil contar apenas uma história, Uma caneca de tinta irlandesa é um labiríntico jogo de mise en abîme irónico, dolente e caótico. Maior exemplo é o capítulo que abre o livro que possuem três arranques diferentes à escolha do leitor.

“Tendo colocado na boca o pão suficiente para mastigar durante três minutos. (…) Reflecti sobre as minhas atividades literárias dos tempos livres. Um só início e um só final era algo de que eu não concordava. Um bom livro poderia ter três inícios completamente diferentes, inter-relacionados apenas na presciência do autor, e terminar, se necessário for, de trezentas maneiras diferentes.”

 

8.  “Moralidade da Profissão das Letras ” de Robert Louis Stevenson  (Deriva)

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Robert Louis Stevenson não foi apenas um escritor de romances de aventura popular na sua época. Apesar de ser conhecido principalmente pelos seus trabalhos romanescos, como O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde e A Ilha do Tesouro, Stevenson também se aventurou na poesia e no ensaio crítico. É esta última vertente que impressiona de sobremaneira ao leitor atual. O seu acutilante juízo de valor sobre o trabalho do artista/escritor, sobre as implicações de se querer trilhar um caminho voltado para as letras e as concessões que por ventura venham a fazer os escritores em nome do dinheiro e da fama, encontram nesta coleta de ensaios uma voz límpida e galante. Nesta edição de bolso da Devir, fruto de um projeto de investigação financiado pela FCT, temos uma excelente tradução Jorge Bastos da Silva voltada tanto para o leitor de literatura em geral ou como para aqueles que a estudam com rigor. De leitura rápida mas exigindo reflexões profundas, completa o livro uma carta em resposta a um jovem escritor inglês sobre se este deveria enveredar pela carreira dos livros.

 

9.  “Uma coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer” de David Foster Wallace (Quetzal)

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David Foster Wallace pode ser o escritor sensação do momento. Parece estar em todos os lugares e em todas as conversas, mas para ser franco as razões são mais do que óbvias. Antes de mais nada, demorou como tudo a chegada da tradução da sua grande obra-prima Infinite Jest (A Piada Infinita, Quetzal), publicada ano passado por Salvato Telles de Menezes e Vasco Telles de Menezes, pai e filho, respectivamente. Um calhamaço de 1200 páginas que exige muito mais do que fôlego, disposição. Em seguida veio agora a coleta de seus ensaios, reportagens e artigos de opinião sob o título de Uma Coisa Supostamente divertida que nunca mais vou fazer. Não é de se estranhar, por isso, que passado o impacto inicial, o tema D. F. Wallace seja tão recorrente. É a primeira vez que o leitor de língua portuguesa pode digeri-lo com mais calma e tem tempo para pensar a respeito. As obras de Wallace exigem muito do leitor mas ao mesmo tempo são momentos de pura ironia e humor. Nesta coleta de textos, temos uma reportagem sobre Federer – vale ressaltar que antes de se tornar escritor D. F. Wallace foi um atleta de ténis confederado; um ensaio sobre David Lynch e o já cultuado discurso de formatura da universidade de Kenyon College, chamado This is Water (que me parece ser a parte mais fraca do livro). Em suma, David Foster Wallace é mais do que um livro mas sim um projecto de leitura para vários meses.

 

10.  “Tojo” de Miguel-Manso (Relógio D’Água)

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Miguel-Manso não é um iniciante, por mais que para o grande público agora é que tenha vindo a aparecer. Já são sete livros publicados, quase todos em edição do autor, o que explica parte do seu anonimato. A poesia de Miguel-Manso é daquelas que se insurgem no meio do silêncio com uma voz distinta e cheia de referências contemporâneas. Um poeta de longas viagens e poemas sobre cigarros e cafés. A aparente camada de prosaísmo dos seus versos esconde uma intenção de surpreender pelo inesperado. As mulheres que passam, o transcorrer da noite, tudo é tema para esse poeta telúrico, que encontra nas coisas da terra e da vida cotidiana o conteúdo para as suas deambulações. A presente antologia, a primeira da sua lavra, reúne poemas de todos os seus livros já publicados, organizados em três seções (Zep Tepi, Café Tarot e O Poema Segundo o Poema). Pode ser irregular e servir um produto empacotado, com amarras forçadas, mas na impossibilidade de termos acesso aos seus livros anteriores, todos já esgotados, serve como referência para este poeta que se distinguiu entre os seus pares com uma voz impregnada de ritmos e sentidos velados.

Kaefe Conrado