Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Recuamos 40 anos e percebemos que nem sempre a cultura esteve à mercê da sociedade. Nem sempre o que se lia, via e ouvia era o que se desejaria escrever, representar e dizer.

A 12 de abril do presente ano, Durão Barroso apontou a cultura das escolas antes do 25 de abril como uma “cultura de excelência”, e duvida que o mesmo aconteça em muitos estabelecimentos de ensino na situação atual.

Vigoravam conteúdos cuidadosamente selecionados pelo Estado e os professores viam-se obrigados a cooperar com essa situação, podendo, inclusive, punir fisicamente os seus alunos.

O “lápis azul” e a censura afetavam todos os órgãos de comunicação social. Qualquer tipo de informação ou ação que fosse considerada minimamente prejudicial para o Estado estaria excluída da divulgação pública. O Estado escolhia o que as pessoas ouviam, viam e liam. O medo de expressar a opinião em espaços públicos era constante.

Na altura, quanto mais se sabia, menos se devia dizer. Mas o receio era ambivalente. O povo receava falar e ser preso, assim como o Estado receava que alguma informação ateasse fogo a um regime que era na altura contestado por todos silenciosamente. A única diferença era o poder. O português nunca teve até então a oportunidade de se unir e lutar, sempre se foi conformando.

Maria da Conceição Mil-Homens tem hoje 72 anos e considera-se uma pessoa culta. Apesar disso, afirma que na altura estava alheia a quase tudo o que se passava na esfera pública. De política nada percebia. Mas cumpria a sua função como mulher, segundo a ideologia da altura. Augusto Alves dos Santos, o seu marido, esteve presente na guerra colonial como enfermeiro, e apesar de ter alguma consciência do estado político nacional, ficou completamente surpreso quando ligou a televisão e viu a revolução que acontecia no país.

Teatros, cinemas, rádio e televisão. Aos poucos iam ganhando mais adesão, mas o que passava não era tão espontâneo como se desejaria. No Estado Novo, o teatro, bem como as outras artes do espetáculo, estava submetido a uma Comissão de Classificação de Espetáculos que atuava segundo as leis impostas pelo regime.

O regime era opositor a tudo o que faria as pessoas pensar. Havia, no entanto, formas de contornar e enganar a censura de forma subtil, recorrendo, por exemplo, à poesia. Outra forma era não fazer demasiada publicidade, manter a divulgação de eventos relativamente restrita para não chamar a atenção dos elementos de censura e da PIDE. Diz-se que apesar de tudo, os escritores e produtores culturais da altura tinham mais inteligência que os elementos censores, e portanto algumas sátiras e metáforas iam levantando questões de forma discreta.

Na época eram cortadas ou proibidas peças que fizessem alusão a revoluções, à guerra, a ideias pacifistas, a aspetos de cariz sexual, situações brejeiras, questões religiosas, aspetos que punham em causa a família, particularmente no que diz respeito à fidelidade conjugal.

Eram impostos limites à criação artística. As pessoas não tinham muitas vezes acesso a uma obra totalmente espontânea e verdadeira. Era uma reconstrução da realidade que a anterior tentava representar, de forma a promover ou pelo menos não pôr em causa de alguma forma a doutrina do Estado.

A rádio foi um meio fundamental para o sucesso da Revolução, mas antes deste acontecimento também ela estava condicionada aos princípios do “aceitável” do regime que se vivia. Ela e todos os restantes órgãos de comunicação social.

A nação andava à maré de “Deus, Pátria e Família”. As mulheres em casa a tratar dos filhos e da lida doméstica, os homens sempre dispostos a lutar pelo seu país, e todos apoiados pela fé que promovia o regime. A cultura era uma coisa de ricos. E talvez nem isso. A cultura era o que o Estado quisesse que fosse.

No fundo, as pessoas viam a cultura de forma desfocada, ouviam-na com ruído e liam-na com lentes sujas, mas tendo, contudo, as entrelinhas que escapavam à censura.

40 anos depois somos livres. Temos agora a possibilidade de produzir e aderir a todo o tipo de produção cultural, que assumiu um vasto conceito e várias formas. Perante a diversidade e liberdade de acesso, o entrave maior é representado pela escassez de recursos causada pela atual conjuntura económica, que dificulta de facto o acesso aos produtos culturais, bem como à sua produção. Mas temos agora a hipótese de integrar realmente a cultura que nos rodeia, havendo esse interesse e essa vontade.

A cultura é agora para o cidadão uma necessidade e um direito, em simultâneo. Não há censura, não existem obrigações religiosas, existe igualdade de género. Os portugueses que revolucionaram o país sem matar deixam aos de agora a missão de não deixar morrer nenhuma das liberdades conseguidas nesse dia. Seja com ou sem cravos.