Uma volta pelo sótão de Thom Yorke
Quem quiser ouvir o novo álbum de Thom Yorke pode ir buscá-lo ao BitTorrent. E não. Ninguém aqui está a incentivar a pirataria. Pelo contrário: essa é a forma legítima com que Tomorrow’s Modern Boxes pode, mediante uma pequena quantia, ser obtido. Sem spyware, editoras a meter o nariz pelo meio ou publicidades incomodativas. Desconfiado? Confuso? Então basta lembrar que a ideia surgiu da mesma mente que, há sete anos, nos quis vender um álbum pelo preço que lhe quiséssemos dar. Sim, falamos de In Rainbows (2007).
Lançado em absoluto segredo – e tendo por missão testar um modelo de negócio alternativo para o mundo da música – Tomorrow’s Modern Boxes é como um daqueles objectos misteriosos e obscuros que às vezes encontramos no sótão de um familiar quando lá entramos por engano. Assim que os observamos, sentimos uma espécie de curiosidade hipnótica que nos faz dizer ‘uau, isto existe?’ até, eventualmente, nos voltarmos a aperceber do motivo que os levou àquele abandonado sítio em primeiro lugar.
Não. Calma. A música com que o cantor nos presenteia ao longo de 38 minutos não tresanda a pó nem contém teias de aranha. Também não passou de moda ou deixou de nos servir. Tão-pouco se pode dizer que não possua uma utilidade prática. O que nunca deixamos de sentir quando ouvimos o álbum, todavia, é que acabámos de entrar (e não necessariamente com autorização) num espaço íntimo e pessoal, repleto de memórias ou exercícios que o tempo deixou indeterminadamente arquivados numa gaveta ou armário. É que isto, que até agora nunca tinha visto a luz do dia, soa-nos ao Thom Yorke de sempre.
Temos aquele falsete inconfundível que influenciou uma geração de cantores. Temos os fantasmagóricos apontamentos de piano (geralmente em loop) que obscurecem o ambiente. Temos os sintetizadores atmosféricos que agonizam a paisagem. Temos as batidas electrónicas e os efeitos glitch, provavelmente nascidos depois de horas em frente a um Mac. Temos letras crípticas e palavras que nem sempre se distinguem bem, mas que geram uma já familiar aura de mistério. E temos o negrume claustrofóbico que sempre marca os seus trabalhos a solo.
Existe, de facto, uma interessante evolução em relação às primeiras experiências electrónicas que o músico protagonizou em The Eraser (2006). O novo disco faz um mergulho de maior profundidade no universo sónico e nas ideias que o antecessor tinha inaugurado, demonstrando que o britânico consegue fazer música digital intrigante e hipnótica sem precisar de refrões fáceis ou melodias contagiantes. Ou sequer de guitarras, baixos eléctricos ou de aparelhos acústicos de percussão.
O desalento ao teclado servido em “Interference” (uma das mais belas passagens de Tomorrow’s Modern Boxes), o frenesim agridoce de “The Mother Lode” (momento em que o cérebro é convidado a dançar), ou a agonia confessional de “Truth Ray” (onde um fúnebre sintetizador e uma batida espartana servem de fundo ao lamento de um Thom Yorke invulgarmente frágil e íntimo) constarão entre os momentos mais interessantes que o britânico se pode gabar de contar, até ao momento, na sua carreira a solo.
Com tudo isto, Tomorrow’s Modern Boxes é, simultânea e paradoxalmente, uma progressão natural e um passo atrás no currículo de Thom Yorke. Afinal de contas, e pese embora o elogio que lhe pudemos tecer, o novo álbum do cantor perde o trunfo mais valioso de que o seu outro projecto extra – Radiohead – os Atoms for Peace – se podia gabar: a rara capacidade de fazer com que a música electrónica soe simultaneamente gélida e quente, à medida que a instrumentação digital e a orgânica se misturam e os preconceitos se redem à evidência dos factos.
É na ausência de uma maior heterogeneidade no que à temperatura e ao tempero das músicas diz respeito que podemos apontar a maior falha de Tomorrow’s Modern Boxes. É um álbum que exige atenção e que vai sucessivamente revelando aspectos sobre a sua intimidade, mas que não fornece a doce recompensa que os Atoms for Peace nos puderam dar há mais de um ano. O que não lhe impede de ser um objecto curioso. Mas daqueles a que só regressaremos muito ocasionalmente – altura em que Tomorrow’s Modern Boxes nos fará exclamar ‘uau, isto existe?’ e nos dará 38 minutos de culpado júbilo (porque, afinal, o sótão não é bem nosso).