Nos meus primeiros tempos de Universidade, um docente não sofria de excesso de solicitação. Havia duas ou três entidades passíveis de lhe pedir iniciativas: o Diretor do Departamento, o Presidente da Escola e, eventualmente, uma ou outra comissão de curso. Quanto ao resto, raridades.

Hoje, contam-se às dezenas as entidades que solicitam, com o devido direito, os docentes, com predomínio dos assuntos burocráticos. Há dias em que os dedos das mãos não são suficientes para contabilizar as solicitações presenciais, por correio eletrónico ou por telefone. Fala-se da capacitação e da libertação proporcionadas pelas novas tecnologias. Na realidade, as entidades mais beneficiadas são as burocracias. Transformam-nos em cataventos e enredam-nos, como diria Max Weber, numa “gaiola de aço”. Como lidar com tamanho desassossego? Os momentos de concentração são cada vez mais curtos e mais intermitentes e os custos de oportunidade agravam-se. Para Pierre Bourdieu, a scholé, distância à necessidade e à urgência, é apanágio do cientista. Prefiro o ceticismo de Max Weber face à “suprema dominação do modo burocrático da vida”.

Naquele tempo, não se desdenhava publicar na revista do próprio centro de investigação. Implantou-se, entretanto, a política dos cucos, aves que colocam os ovos em ninho alheio. De excelência em excelência, as políticas de divulgação científica apuram-se: o que conta não é o conteúdo do artigo, a sua qualidade e originalidade. Ler os artigos tornou-se dispensável, num prosaico adeus ao texto. O que importa são os parâmetros exógenos formais: o aval dos pares, a marca da revista, as referências e as citações. Às revistas com arbitragem, sucedem-se as revistas indexadas. Com consequências decisivas nas carreiras e nos rankings. Uma acha para o incremento do carreirismo e da discriminação, numa arena onde se acotovelam os investigadores. Justifica-se? Os romeiros são tantos e a procissão ainda vai no adro… Para muitos aparelhos de poder, trata-se de um progresso indiscutível. Assiste-me duvidar. Alguém consegue assegurar, com argumentos racionais, que os artigos publicados em revistas indexadas são melhores do que os demais? No meu caso, não é verdade.

Publicar um artigo não se resume a uma vénia a Gutenberg. Existem lealdades e compromissos, alguns suscetíveis de se sobrepor ao imperativo da indexação. O artigo pode estar vinculado a uma organização, a uma investigação ou a uma intervenção com ancoragem social. Por outro lado, a que título se demove um investigador de publicar numa revista com a qual se identifica? Pode um cientista ser penalizado por publicar onde deve e, eventualmente, onde quer? Há poderes que assim o entendem. Se não mandam, constrangem. O eterno retorno do dilema do burro entre o pau e a cenoura. Se um cientista não quer sair prejudicado, o mais avisado é demandar revistas com contador internacional. Em poucos anos, a situação do cientista inverteu-se: antes pediam-lhe artigos. Agora, anda de artigo na mão, a pedir que o aceitem. Pelo meio, desbota a autonomia e a diversidade.

Entoam-se odes à globalização, fator de comunicação, abertura e liberdade. Graças à globalização, só há contas de somar e multiplicar. Duvido que seja o caso da divulgação científica. A focalização nas revistas indexadas afunilou o mundo científico. No preciso momento em que se expandem e se diversificam os suportes da comunicação científica, os peritos optam por estreitar as margens. A globalização pode contribuir para uma atrofia da atividade científica. A globalização pode afunilar e atrofiar o mundo. A liberdade encolhe-se e a diversidade esfuma-se. E as universidades são cúmplices. Este dispositivo quantofrénico (Pitirim Sorokin) enxerta-se num surto burocrático sem precedentes, facilitado, repito-o, pelas novas tecnologias. Um passo em frente rumo à irracionalidade da razão. Quando Pierre Bourdieu alude à scholé, deve estar a pensar num outro mundo. Os receios de Max Weber são mais lúcidos: “É horrível pensar que um dia o mundo será ocupado por estas pequenas peças, por pequenos homens que se agarram a pequenos empregos e procuram obter outros maiores (…) Esta paixão pela burocracia é suficiente para pôr-nos em desespero (…) A grande questão não é saber como promover e estimular esta evolução, mas como se opor a esta máquina para manter uma parte da humanidade livre desse desmembramento da alma, desta suprema dominação do modo burocrático de vida”.