A qualidade de vida também se mede. A Organização Mundial de Saúde (OMS) concebeu uma ferramenta para aferir a qualidade de vida das pessoas: o WHOQOL. O WHOQOL é um questionário com várias escalas. Com um total de 100 itens, trata-se de uma ferramenta robusta, validada, com várias versões, utilizada em diversas áreas científicas. Mas o que é a qualidade de vida? Quais são as dimensões e os indicadores?
A versão portuguesa abreviada contempla 26 itens. Uma categorização rápida, inevitavelmente arbitrária destes itens proporciona os seguintes resultados: o total ascende a 30, uma vez que quatro itens foram incluídos em duas categorias. A maioria deles remete para saúde, com oito e capacidades várias, com sete.
As escalas WHOQOL suscitam alguns reparos singelos. À luz dos itens, o barco dos valores pós-materialistas encalhou em algum rochedo antes de arribar às escalas do WHOQOL. Responsável por pesquisas internacionais dedicadas às dinâmicas dos valores, Ronald Inglehart prevê a ascensão de valores pós-materialistas, tais como a autonomia, a participação, a realização pessoal e o prazer no trabalho, em detrimento dos valores materialistas, tais como o desafogo económico e a segurança. No WHOQOL, as dimensões “materialistas” imperam. É certo que “qualidade de vida”, sobretudo quando associada a condições de vida, não é o mesmo que “valores de vida”. Não se confundem, mas pressupõem-se e intersectam-se.
Os autores do WHOQOL fazem do indivíduo o ponto de fuga da qualidade de vida. Tudo desagua no entrevistado. Este, ou se autoavalia ou avalia o seu entorno. Mais do que egocentrismo, parece egoísmo. Atente-se no seguinte item: “Até que ponto está satisfeito com o apoio que recebe dos seus amigos?” Nunca se pergunta ao entrevistado o que faz, ou fez, de bem ou de mal, aos outros. Dar, participar e amar pode proporcionar mais felicidade do que receber, desfrutar e beneficiar. Dar é uma bem-aventurança!
Saltei da qualidade de vida para a felicidade. Mas qual é a qualidade de vida que não namora a felicidade? É verdade que a felicidade ainda não se mede. Mas não tarda. Se calhar, a tribo já está a cometer a proeza. Desde há milhares de anos, mantivemos os neurónios relativamente inalterados. Mas, num ponto, evoluímos: nasceu-nos uma fita métrica na cabeça. No algoritmo promovido pela técnica e pela ciência, a felicidade é uma sub-rotina desgarrada, regada por principezinhos poetas.
Não há memória de uma montagem de padrões e protótipos de perfeição humana tão consensual, precisa e sistemática. Outrora, escalava-se o peixe e a lampreia. Agora, escala-se tudo. Da horta até à cátedra. Pitirim Sorokin falava, já nos anos cinquenta, em “quantofrenia e testomania”. O nutricionista empenha-se em registar as gramas em excesso e receita doses de sementes. O cientista dissemina as ideias na roleta indexada da excelência. Eis, em suma, a questão: ser ou não ser uma equação.
Há palavras que dizem uma sociedade. Salvação, na Idade Média; prosperidade, nos últimos séculos. Se bem me lembro, no Natal, prosperidade era a palavra mestre, repetida vezes sem conta nas mensagens dos militares da Guerra do Ultramar. Qualidade de vida ergue-se como a palavra mestre da sociedade atual. Não demora a digitalização de postais ilustrados com a seguinte mensagem: “Votos de qualidade de vida para sempre”.
A qualidade de vida é a nossa lebre. Corremos atrás dela como os medievais corriam atrás da salvação. Multiplicam-se os aparelhos e os dispositivos: organismos políticos, hospitais, universidades, centros de investigação, comunicação social, ONG’s. O equilíbrio é, por sua vez, a disposição certa, a nova pedra filosofal. Há séculos que o equilíbrio é vital, pelo menos, no que respeita à saúde. Recorde-se o equilíbrio dos quatro humores corporais, aproximado à custa de sangrias e sanguessugas. Hoje, alcançar ou manter o equilíbrio é uma missão. E uma provação, num mundo prenhe de tentações nefastas à qualidade de vida: o tabaco, o álcool, o sofá, os fritos, as gorduras, a coca-cola, o açúcar, o sal, o pastel de nata e, pasme-se, o leite. Quase tudo desequilibra. Importa revisitar as estátuas gregas, os palácios renascentistas e os corpos coreografados da propaganda nazi.
Esta fixação no equilíbrio tem pouco de pós-moderno. O barroco, o trágico e o grotesco não conseguem destronar esta aspiração clássica. Tanto equilíbrio traz-nos desequilibrados. Mas o grande desíquilibrador deste funambulismo coletivo é, naturalmente, a morte. Afastamo-la do claustro para o cemitério, do centro para a periferia, da rua para o ecrã, sempre com ela ao colo (Thomas, 1979). Entre 1960 e 2011, a esperança de vida de um português subiu de 60,7 para 76,7 anos e a esperança de vida de uma portuguesa de 66,4 para 82,6 anos. Cerca de 16 anos! Já há quem “declare morte à morte” (Alexandre, Laurent, La mort de la mort, Paris, JC Lattès Editions, 2011). Entretanto, a morte espera, dança e ri, como nos quadros de James Ensor, Otto Dix e George Grosz. “A morte agarra aqueles que lhe fogem”, terá dito Horácio. Se a qualidade de vida é a nossa luz, a morte é a nossa sombra. O equilíbrio é amigo da repetição, a vida tem limites e a perfeição, defeitos.