Sem sombra de dúvida, “O Gangue” foi o filme mais silencioso que alguma vez vi. É uma proposta inédita nestes pouco mais de cem anos de cinema. A sua peculiaridade baseia-se no fato de ser integralmente falado em linguagem gestual, sem qualquer legenda ou voice-over. A história constrói-se através do código de símbolos que as personagens usam, como se fosse um ballet mudo, e do som ambiente. Como sou um pouco leiga neste campo, não entendi exatamente cada fala das personagens, mas a abordagem do diretor é tão bem feita que o processo acabou por ser mais fácil do que eu imaginava. E é este o grande mérito do enredo – não se torna entediante.
A obra acompanha o surdo-mudo Sergey (Grigoriy Fesenko), que se matricula numa escola especializada e logo é admitido n’O Gangue, um grupo de jovens estudantes que se impõem pela força sobre os outros e prostituem as suas colegas. Após praticar uma série de furtos, ele cresce na hierarquia do grupo, mas envolve-se romanticamente com Anna (Yana Novikova), a companheira do líder, colocando a sua vida em perigo.
Houve inúmeros filmes ao longo dos anos sobre gangues de adolescentes, os seus rituais violentos e códigos de ética radicais, mas “O Gangue” é talvez o primeiro do género a apresentar um elenco, amador, diga-se de passagem, totalmente composto por utilizadores de língua gestual.
Os planos de sequência de difícil realização, com imagens chocantes e perturbadoras merecem rasgados elogios. A fotografia de Valentyn Vasyanovich é de uma mestria inigualável – os ângulos da câmara foram bem escolhidos, e os jogos de iluminação são muito interessantes. A montagem é muito precisa, com cortes no momento certo e boas transições de cena.
A linguagem dos cenários, formados pelos típicos blocos de prédios da era soviética – com tons cinza, frios, sem identidade, sem futuro – impressionou-me. Assim se revela uma Ucrânia, que, órfã da URSS, tem dificuldade em desenvolver-se e separar-se da nação-satélite, a Rússia (nota-se pelas sucatas de carros deixadas na rua, paredes com graffitis decrépitos, muros com pichações de gangues, etc…). Um abandono que se acumula com o tempo. Assim como a juventude reprimida pelo sistema, um retrato perfeito.
Um dos poucos pontos menos bons que tenho a apontar sobre esta obra, talvez o único, é a pouca genialidade do argumento – é relativamente simples. No entanto, a forma como a história é apresentada é extremamente inovador.
É possível ver que Myroslav Slaboshpytskiy (o realizador), expõe a situação política presente da Ucrânia no filme. A professora da turma, uma figura que deveria representar a autoridade, a sabedoria e a cultura, só aparece uma vez e não consegue controlar os alunos. Uma bela metáfora sobre os impotentes governos que perderam o controlo sobre a sociedade, onde consequentemente surgem gangues criminosos que atuam de forma livre.
Vencedor do Grande Prémio da Semana da Crítica no Festival de Cannes 2014, o filme pode ser considerado cruel, indigesto, demasiado real, doentio – no fundo, um microcosmos de ultraviolência. Mas é uma obra de arte. Vale a pena vê-lo (mais do que uma vez), pela dimensão humana, ou o contrário, pela falta dela a que chegamos.
Título em Português: O Gangue
Título Original: Plemya – Плем’я
Realização: Myroslav Slaboshpytskiy
Argumento: Myroslav Slaboshpytskiy
Elenco: Grigoriy Fesenko, Yana Novikova, Rosa Babiy, Alexander Dsiadevich, Yaroslav Biletskiy, Ivan Tishko, Alexander Osadchiy, Alexander Sidelnikov e Alexander Panivan
Duração: 130 minutos