Gonçalo M.Tavares, que em 2005 venceu o prémio José Saramago, tornou-se indubitavelmente num dos melhores escritores lusófonos da actualidade. "Jerusalém", o livro que lhe rendeu o prémio, é a melhor prova disso.

“Jerusalém” não é o típico romance português e latino. Não há a presença de uma paixão motivadora, nem a esperança num desfecho feliz: vamos lendo, deixamo-nos levar pelas personagens, e vagarosamente vemos o seu destino ser escrito.

A história foca-se em várias personagens completamente distintas, e todas elas estão estranhamente ligadas no final do conto. São-nos apresentados Mylia, esquizofrénica; Theodor Busbeck, neurologista conceituado; Hinnerk, um homem com tendências violentas; Ernst, também ele esquizofrénico; Kaas, um rapaz com deficiências motoras; e Hanna, uma prostituta.

Todas estas personagens, tão diferentes e com características tão peculiares, questionam todo o desenrolar da história. Mas é aí que surge a escrita brilhante de Gonçalo M. Tavares. Com cenas completamente aleatórias, consegue agarrar a nossa atenção, com uma inteligência de escrita e de organização absolutamente notável.

Ao longo da história, somos confrontados com várias analepses e saltos no espaço temporal. Por momentos, estamos à frente de Theodor Busbeck a falar com Mylia, a sua nova paciente, há perto de 15 anos; no capítulo seguinte, estamos na cabeça de Hinnerk, nos tempos actuais. O transporte temporal é constante, mas seria de esperar que, em algum ponto, isto se tornasse confuso. A verdade é que Tavares mantém-nos atentos, e a relação inconsciente que fazemos entre as personagens é de tal forma imediata e criada desde o primeiro parágrafo, que em momento algum nos sentimos confusos.

Foto: fmh.utl.pt

Foto: fmh.utl.pt

Algo curioso também nos mantém despertos. Os espaços “estéticos” dentro de um só parágrafo são aparentemente aleatórios, mas a sensação com que ficamos com o final do livro é que são cuidadosamente colocados. São descansos: pausas na escrita e na leitura.

Tudo é pensado: as pausas a meio das histórias das personagens; o nome das que figuram em determinado capítulo no início do mesmo; o próprio facto de o livro ser bem sintetizado, pequeno, mas mesmo assim não perder qualquer sentimento que possa despertar, é sublime.

Não há um momento do livro em que não sintamos uma sensação de pena, de repulsa ou de revolta. Nisto, Gonçalo M. Tavares é tudo menos o normal escritor lusófono. Há amor, mas é estranho e não parece apaixonado aos nossos olhos.

Mas a loucura não é o único tema presente na obra. Também são abordados o totalitarismo, que nos deixa furiosos e revoltados com o que este faz às personagens – e talvez seja aqui a proveniência do nome “Jerusalém”, relacionando o estudo sobre a história e desenvolvimento do terror de Theodor Busbeck, e o totalitarismo do século XX, com os actos praticados contra os judeus.

Ficamos, no entanto, um pouco surpresos e “pendurados” com o final. Não percebemos o porquê de certas acções, ficamos com mais perguntas do que conclusões, e essa é a maior falha no livro. Percebe-se o “porquê” do final, mas mesmo assim ficamos demasiado desejosos por mais páginas.

No geral, “Jerusalém” abre-nos os olhos para certas dificuldades que não considerávamos, e levanta a barreira de tabus que, em 2005, estavam muito latentes na literatura. E é, merecidamente, o “Livro da Década” para os críticos do público.

Terão, com certeza, tempo para ler Gonçalo M. Tavares, porque os seus livros arranjam tempo por si. Recomendo vivamente.