Black Mirror é uma série tragicómica que recorre ao humor negro e a uma abordagem antropológica pessimista para criar o retrato mais perturbante desta década sobre a “sociedade de ecrãs”.

Imaginem que Rod Serling, o icónico criador de Twilight Zone, apercebendo-se dos nefastos efeitos que as tecnologias de comunicação têm sobre as nossas vidas, nos dias de hoje, decide escrever alguns episódios, para satirizar este fenómeno.

Como Serling já não se encontra entre nós, coube a Charlie Brooker, o cronista britânico tornado em argumentista satírico a tarefa. O resultado? Apesar dos poucos episódios que tem, é, discutivelmente, a série mais subversivamente incomodativa desta década.1

Black Mirror é uma série de antologia, na qual cada episódio, sem relação com os outros, conta uma história diferente, com personagens diferentes, mas sempre com o mesmo ponto de partida: analisar até às últimas consequências a forma como o uso das tecnologias de comunicação – da televisão, passando pelos smartphones até à redes sociais – afectam negativamente, quase destruindo, de forma trágica, as vidas das personagens principais. Tudo isto explorado com recurso a um humor negro super ácido e, em certas ocasiões, de um absurdo quasi-kafkiano.

A série ora adopta abordagens mais realistas, como no primeiro episódio (O Hino Nacional), ora recorre a elementos de sci-fi e de surrealismo bizarro, para prever ou hiperbolizar os efeitos das tecnologias. Não se limitando a um género, o ponto mais forte da criação de Charlie Brooker é como consegue retratar cenários de tragédia, de forma bastante humana, sem degenerar para o grotesco ou o caricato. No entanto, enquanto é mantida uma abordagem sóbria, está sempre presente uma forte componente de duras críticas sociais, recorrendo ao irónico e ao sardónico.

Mas que cenários assim tão pessimistas é que a série apresenta? Pois bem. Pensem num cenário em que, num futuro próximo, uma empresa oferece a possibilidade de, instalando um mecanismo no cérebro, gravarmos todas as nossas memórias, tudo o que vimos e ouvimos? E que nos permitisse reproduzir as nossas memórias, no ecrã de televisão da casa dos nossos amigos? Ou suponham que, um ente amado vosso morreu. E alguém oferece-vos um serviço, no qual podem ressuscitar a pessoa, através dos seus posts nas redes sociais e dos seus registos audiovisuais?2

É aqui que vemos a qualidade desta série. O “espelho negro” que é referido no título é o espelho dos nossos ecrãs.

O mais assustador é quando nos apercebemos que as consequências desastrosas que ocorrem na vida das personagens, por deixarem a sua vida ser condicionada pelas tecnologias de comunicação, são só uma previsão, um adiantamento, das consequências que começamos a sentir hoje, nas nossas vidas individuais e na própria sociedade em que vivemos.

Independentemente do que depois se retire de toda esta experiência, uma coisa é garantida: depois de Black Mirror, quando pegarmos nos nossos smartphones, ligarmos os nossos ecrãs do computador, vermos um programa de televisão, fazermos um post no Facebook ou publicarmos uma foto no Instagram, de agora em diante, tudo isso vai-nos deixar muito mais incomodados e desconfortáveis.

E, no fundo, sabemos bem o porquê.