Marcada pelo rock e pelas bandas de garagem que germinaram ao longo das últimas décadas, Braga acolhe, hoje, a da música eletrónica. Entre o aparecimento de novas “bandas de quarto” e a afirmação do festival Semibreve, a cidade vai-se impondo no panorama nacional da eletrónica.

O computador já está a funcionar, só falta mesmo que Marco acabe de ligar os pedais da guitarra. Ouve-se ao fundo James Blake, mas “podia ser uma cena marada japonesa”. Mal se afina tudo, e se dá o último bafo no cigarro, Bernardo solta o beat nas colunas.

Num quarto, de janela aberta para uma rua sem saída, numa freguesia na periferia de Braga, o ensaio de Leviatã está aberto e continua tarde fora. Só há pausa para o cigarro, ou então, quando o programa de produção musical crasha. Não há uma bateria, nem um baixo, ou um vocalista, dentro do quarto de Bernardo Barbosa. Até há, mas por detrás do ecrã do computador.

Leviatã é um dos projetos musicais bracarenses que têm surgido na linha da eletrónica. Uma banda que se move na fusão entre estilos, que extrai o mais que pode do ambiental e experimental da eletrónica e do groove rock da guitarra. Torna-se uma experiência dançável, que vai sendo composta ao ritmo do método tentativa e erro, em ensaio.

“Isso, isso, toca isso”, atira Bernardo, entusiasmado com a sequência de cordas que Marco acaba de improvisar. Não há ciência ou métodos rígidos na composição, é experimentar. “Precisa de um synth fat aqui”.

Música eletrónica: um estigma e uma novidade

Muito tempo se gasta a aperfeiçoar uma sequência curta. Exige trabalho de casa para que tudo soe na perfeição ao vivo. Bernardo não carrega só no play quando dá um concerto, mas considera que “é um processo diferente [do tradicional], menos físico e corporal”.

A imobilidade faz com que haja um “estigma sobre quem faz música eletrónica”. Mas Bernardo não dramatiza. “Não me importa se o gajo só está a carregar no play ou não, o que interessa é que se no final o concerto foi bom e a música soou bem, então foi feito um bom trabalho”.

Em Leviatã desde 2015, Bernardo Barbosa lançou-se na música, em 2011, com Ermo. Estas bandas bracarenses fazem parte da nova vaga de projetos a aparecer na cidade. Mas calma, não há um boom.

O locutor na Rádio Universitária do Minho (RUM), João Pereira, fala numa “escassez” de novos projetos. Mas encontra um tipo de bandas que “têm muita qualidade e que se estão a destacar”. São as de música eletrónica. The Missing Link, Tundra Fault e in Feathers, são projetos bracarenses destacados pelo responsável do programa de rádio Português Suave.

“Hoje é a eletrónica, amanhã é o hip-hop, no próximo fim de semana é o fado”. As “modas” marcam a cidade, e João, como promotor de eventos que também é, tem que estar atento. Mas lembra que, apesar desta agitação eletrónica, “a génese musical de Braga é o rock, e dificilmente deixará de ser”.

Uma retrospetiva à eletrónica

Ligado à eletrónica desde os 12 anos de idade, Lucas Palmeira considera que a supremacia do rock nas programações “é um paradigma que tem vindo a mudar aos poucos”. O produtor musical, de 37 anos, começou muito cedo nestas lides ao ter “herdado” material do seu irmão. Em casa ouvia-se vinis de Kraftwerk ou Rick Wakeman. Atualmente, é o homem por detrás de The Missing Link.

Nos anos 90, “o acesso à tecnologia para a criação musical eletrónica ainda era escasso” e a utilização do material requeria “muitas vezes conhecimento técnico especializado”. Lucas lembra que, até há pouco tempo, “a criação de um concerto de música eletrónica era algo bastante difícil de fazer, muitas vezes com logísticas complicadas”.

“Eclético”. É assim que Lucas Palmeira olha para o gosto do público atual. Coloca as responsabilidades nos “muito reconhecidos projetos de eletrónica ou de fusão” que surgem e nos line-ups dos festivais com uma aposta forte nestas sonoridades.

Braga, a capital portuguesa da eletrónica?

Em Braga, “não há grande espaço para nenhum estilo”, constata o locutor da RUM. Está a falar da segunda liga, a das “bandas emergentes”. Refere que, neste momento, só há um bar em Braga a acolher concertos regularmente, o Sé La Vie.

Mas João Pereira não tem dúvida que existe público para a música eletrónica na cidade. “Prova disso é o Semibreve”. “Estamos a falar de um evento que apresenta, maioritariamente, projetos de eletrónica experimental que não são conhecidos pelas grandes massas e, mesmo assim, enchem o Theatro Circo”, constata João.

“A qualidade e a frescura da abertura de novos horizontes na criação artística é um mote que parece assentar muito bem na postura do festival, atitude que tem dado frutos pela adesão e formação de público”, nota o fundador de The Missing Link.

O Semibreve trata-se, assim, de “um festival que cruza uma componente sonora, baseada em instrumentos eletrónicos, à qual está ligada uma componente visual forte”, resume o diretor artístico do festival, Luís Fernandes. O projeto dedica-se exclusivamente à eletrónica e outras artes digitais. Realiza-se desde 2011 e tem o Theatro Circo como nave-mãe, mas também se espalha por outros espaços da cidade.

Nasceu da ideia de “criar um festival diferente”. “Não havia nenhum festival dedicado à música eletrónica em Portugal continental, naquela altura”, explica Luís. Só o “Madeira Dig”, naquela ilha portuguesa. E Braga revelou ser a cidade certa, porque “tem uma componente tecnológica muito forte.”

Barcelos foi considerada capital do rock, a Seattle portuguesa. Continuando a “brincadeira dos títulos”, se houvesse uma capital da eletrónica – uma Berlim portuguesa -, para Luís, essa cidade poderia ser Braga. “No que diz respeito à programação, Braga pode-se tornar a capital nacional da música eletrónica”.

E explica o porquê: “É uma cidade pequena, comparada ao Porto e Lisboa, na qual há muita programação eletrónica e há o festival mais marcante nessa área. Numa cidade pequena haver um tipo de programação tão vanguardista não é normal”.

Os elogios ao festival parecem unânimes. “É o festival que coloca Braga no mapa da música eletrónica”, atira Bernardo Barbosa. Considera-o também um ponto turístico para a cidade, “diferente dos outros, não é tipo a Sé”.

Depois de uma tarde de ensaio, os Leviatã terminam, por agora, o namoro entre um Asus e uma Gibson SG. Marco arruma os pedais, a guitarra e o amplificador. O espaço volta a ser o que era: um quarto. E agora sim, ouve-se ao fundo uma banda kraut japonsesa.