Multidões gritavam, clamavam, inflamavam. Avivava-se a palavra “liberdade” numa fogueira que procurava iluminar a esperança de uma vida melhor. O resultado foi triunfal. As mãos aqueceram, a chama da luta avivou-se ainda mais e chegou a todo o país, fazendo, em vez de queimar, florir mares de cravos. Com uma musicalidade sobretudo militar, interpretada por vários artistas emergentes e reconhecidos, a música fez alargar os horizontes de uma sociedade mergulhada no aperto de um sentimento patriótico.
Com um registo de quatro mortos e 41 feridos, a Revolução de Abril “foi uma revolução pacífica”. Este é o entender de António Amaro das Neves, docente de História, residente em Guimarães, desde a sua juventude. Com 15 anos de idade, viveu de perto a Revolução do 25 de abril, naquela cidade. “Levantou-se o vapor que estava sob pressão”, alegoriza. E a “música militar ficou como banda sonora do dia”.
Recuando aos seus 12 anos, César Machado, vimaranense com uma ligação de longos anos à música e dirigente da associação musical Convívio, descreve o ambiente pré-25 de abril como “cinzento”. Mas tudo mudou, quando, “um dia, fizeram-nos perceber que havia ocorrido algo de grave”, mas para melhor.
Segundo Amaro, os dias que se sucederam ao 25 de abril de 1974 foram “extraordinários”, “esfusiantes”, “de festa”. Era um ambiente de “efervescência tremenda”, ao qual se juntavam “concertos organizados por associações”, com músicas que indicavam “uma aposta para além da guitarra e da voz”. César dá conta de “uma explosão na canção” de “uma qualidade artística que não dependia apenas da mensagem”.A técnica e a estética do tema musical ganharam também a sua importância.
Várias figuras ganharam reconhecimento nacional na música na época do 25 de abril e nos tempos posteriores, mesmo até à atualidade. Nomes como José Maria Branco, Fausto, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Sérgio Godinho, Fernando Tordo, Carlos do Carmo, Ary dos Santos, José Niza, Nuno Nazaré Fernandes constam do panorama português musical da época. Segundo César Machado, “acrescentaram qualidade às canções”.
Vários dos artistas mencionados constaram em listas de militantes de várias iniciativas político-ideológicas, com uma inclinação política de esquerda. E “não havia luta sem festa, nem festa sem luta”, diz Amaro, porque “a música passou [, na altura,] a fazer parte dos comícios”.
Zeca Afonso, uma viragem no panorama musical português? As palavras de Amaro das Neves qualificam este artista como o percursor da “incorporação da música tradicional na música de vanguarda portuguesa”. “Em Portugal, era muito mais popular a música cantada por portugueses”, baseando-se em “instrumentos acústicos”, explica o docente. De acordo com o César Machado, o “grande acontecimento do ano”, até 1974, “era o Festival da Canção da RTP”.
O incorporar da “portugalidade” na música veio do guitarrista Carlos Paredes, nos anos 50, algo descrito por César como “uma coisa nova” que influenciou os artistas e as letras das músicas que se seguiram. Sobre o reportório de Zeca Afonso, César Machado fala em álbuns que “tinham operado uma revolução”, produzidos por José Maria Branco. “Grândola, Vila Morena”, assim como “E depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, “viraram símbolos porque foram senhas deliberadamente escolhidas pelos operacionais do 25 de abril e isso deixou marcas”, explicita.
Em Portugal, “era o tempo da rádio”. Este meio, dominado fortemente pelas forças militares na época, contribuiu para uma maior transmissão e difusão da informação e de, essencialmente, “música militar”. “Poucas pessoas tinham televisão”, aponta Amaro. Existiam muitas estações e os “jornalistas eram mais dinâmicos”, prevalecendo o áudio sobre o visual.
“Hoje, estamos muito melhor!” O docente de História explica que “não é fácil imaginar este país se não fosse o 25 de abril”. Apesar da desmaterialização da música, “hoje, está muito mais acessível do que no passado”. Já o dirigente associativo comenta: “As ameaças, hoje, são múltiplas. As lutas da juventude são outras. Fazer canções como há 40 ou 50 anos não faria sentido.”
Questionado sobre se o 25 de abril foi mais do que um marco histórico um marco cultural, António Amaro das Neves responde: “Muitíssimo.” “Aquilo que é a música de hoje começou a ganhar muita força ali”, conclui. César Machado afirma expressamente que “a música deu cor à Revolução.” Esta figura “apaixonada pela música” declara que “a música cantou e contou o que estava a acontecer. E foi a arma contra o que não se queria que acontecesse”.
Os sons, as vozes, as sonoridades que invadiam Portugal catapultaram a Nação lusa para um novo lado, que nunca antes tinha presenciado. Os espíritos do medo e da censura desapareceram, dando lugar à liberdade de expressão e à música sentida.