Destruímos a nossa vida com a rotina, com o esquecimento do passado, até não nos lembrarmos daquilo que nos é mais querido. “Flores” é uma história tocante, triste e emocionante, que nos mostra como é que a nossa memória e os momentos mais marcantes da nossa vida nos moldam, sem deixar de despertar para o perigo que pode ser automatizarmos a nossa vida. Torná-la numa rotina.
Afonso Cruz escreve de forma bem clara, não há espaço para distrações. O discurso é simples, é fácil, e mesmo assim sentimo-nos humildes com cada palavra. O autor não perde o fio à meada do que está a dizer: quando alguém interrompe a fala ou o pensamento do locutor, ou mesmo quando um autoclismo grita por cima do barulho dentro da cabeça do protagonista, Cruz retoma imediatamente o que está a sentir e a reflectir consigo mesmo.
O livro é um relato, na primeira pessoa, de um jornalista cansado do seu trabalho e da sua vida. Leva uma vida mecânica, com a sua mulher, Clara, e a filha, Beatriz. No início da obra, este homem começa a ver e a falar com uma frequência crescente o seu vizinho, o senhor Ulme, que sofrera um aneurisma e não tinha qualquer memória afectiva do seu passado. Sabia tudo sobre botânica, mas não se lembrava de alguma vez ter visto uma mulher nua, ou do primeiro beijo.
As vidas dos dois homens começam, aos poucos, a interligar-se. Com a relação do jornalista com a mulher a deteriorar-se a cada dia, especialmente quando esta se começa a desleixar e a não se preocupar com a rotina do marido, a ligação entre ele e o senhor Ulme cresce. Sentimo-nos tristes e desanimados pela família do primeiro, vemos uma existência a desenrolar-se de forma tão quotidiana; mas vemo-lo ganhar um novo ímpeto, quando procura desenterrar as memórias do senhor Ulme, todos os momentos da infância que ficaram perdidos devido ao aneurisma.
Não invejamos a vida de nenhuma das personagens. Não queremos, de todo, chegar ao estado do jornalista, que chega a dizer que ele e Clara se beijam “como quem faz a cama”. Também não nos imaginamos a esquecer quem foi o nosso primeiro amor ou quando bebemos uma cerveja com o nosso pai pela primeira vez. Este é um livro que nos ensina, mais do que tudo, a ter empatia e a valorizar o que temos.
Não há grandes defeitos a apontar a esta obra. Se há algo negativo que podemos apontar, não à forma, mas ao conteúdo, é o prolongar da negatividade. Sim, percebe-se que é suposto ser um livro bem intrínseco, abrindo logo nas primeiras páginas com a morte do pai do protagonista (que surgirá várias vezes ao longo do livro), mas deixa-nos tristes demais. Quando fechamos o livro, sentimo-nos pesados – sedentos por mais, mas pesados.
Em todo o caso, está mais que provado o brilhantismo de Afonso Cruz na literatura, que considero como um dos melhores escritores em Portugal, ao lado de João Tordo, Valter Hugo Mãe, entre outros. Só lhe falta agora o Prémio Saramago. Recomendo vivamente esta obra, que qualquer um lê e devora em poucos dias.
“Flores”
Afonso Cruz
Companhia das Letras
2015