Foi durante alguns meses que estive submersa no universo surreal do japonês Haruki Murakami, um dos escritores contemporâneos mas apreciados atualmente. Digo “alguns meses” não pela extensão da obra, mas pela vontade de não a abandonar e continuar envolvida naquele tão aberrante, e quase incomparável fantástico.

Kafka à Beira-Mar” conta a história de duas personagens que vivem em mundos paralelos. Elas são Kafka Tamura, um jovem de 15 anos que se sente frustrado e decide fugir da sua vida, e do pai que o atormenta com uma sinistra profecia à semelhança da “maldição de Édipo”; e Nakata, o velho ou o “avozinho” que, após uma experiência indecifrável na sua infância, ficara analfabeto e “vazio”, porém ganhara o dom de comunicar com gatos.

Tamura e Nakata não estão sós, são acompanhadas por “personagens-bengala” que se revelam essenciais no desenrolar da história. O primeiro é sempre acompanhado pelo Rapaz Corvo, uma espécie de sombra que o aconselha; na viagem de fuga encontra Sakura, que desperta a sua sexualidade; mais tarde, conta com a ajuda de Oshima, um bibliotecário pacato mas sui generis que lhe oferece alento. Nakata por seu lado, rodeado por gatos com os quais conversa, e é depois ajudado por Hoshino, um gentil camionista que decide seguir Nakata na sua missão de encontrar a “pedra da entrada”.

review.gawker.com

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As duas narrativas, aparentemente distantes e sem nada em comum, vão-se interligando num ritmo crescente, até todas as coincidências se tornarem nítidas e apontarem para uma possível explicação dos acontecimentos. Ainda assim, considero difícil a existência de uma única interpretação possível. Acho até que a essência da obra presenteia-se no seu mistério e mundo ficcional e reflexivo. As descrições, os anseios, medos e pensamentos dos protagonistas, principalmente os de Kafka, são de tal modo realistas e sensíveis que nos prendem e aproximam à trama.

A escolha de “Kafka“ para título e nome do protagonista não foi ao calhas, pode inclusive ser considerada como uma profunda metáfora. Franz Kakfa, escritor conhecido pelos complexos labirintos que criava, aproxima-se do mundo onírico desta leitura, repleta de cenas perturbadoras e explícitas, onde nelas toma lugar o obscuro Johnny Walker, Coronel Sanders como “chulo“ e ainda uma estranha chuva de peixes e sanguessugas. Tamura depara-se também num “Processo de Metamorfose”, onde se descobre a ele próprio e ao seu exterior.

Incentivo à aquisição rápida deste livro e, posteriormente, à sua leitura que, a meu conselho, poderá ser feita ao som de “Trio Arquiduque” de Beethoven, na companhia de um gato e de um bom copo de Porto.