Umberto Eco partiu em Fevereiro; deixou-nos um testemunho de desilusão preocupante com o estado da democracia e de um dos seus pilares, o jornalismo.
A maioria dos intelectuais fala propositadamente num jargão imperceptível para a maioria das pessoas. Aquele que poderia ser o seu grande papel, o de educadores, não se cumpre, porque falam para o círculo fechado dos seus pares. Umberto Eco teve o talento de, sendo um intelectual, se fazer ouvir e, eu diria, compreender pelas gentes. O ponto de partida não parecia nada prometedor: a semiótica.
É uma disciplina obscura que faz os horrores dos estudantes de comunicação, que a maioria não sabe nada, e que uns poucos sabem que trata dos signos e nada mais. Ainda assim, Umberto Eco teve o génio de combinar uma escrita literária cativante (porque não dizer comercial) com a erudição e uma capacidade criativa muito para além do vulgar, mesmo entre alguns dos melhores autores do nosso tempo.
Quando lemos qualquer dos romances do autor, somos constantemente assaltados pela impressão de que existe outra história a progredir em paralelo com aquela que lemos. Porém, a chave da porta para essa outra trama fica na mão do escritor.
Um jornal em testes de edição, uma promessa de publicação para provocar efeitos políticos. Um jornal que não nasceu para ser mas para parecer, de tal forma que, pode nem chegar a ser necessário levar à estampa o número um, o número zero poderá ser bastante. Talvez esteja aqui a primeira ideia subjacente. Uma crítica ao facto de nossos dias, a forma se ter tornado mais importante que o conteúdo.
Desengane-se quem pensar que “Número Zero” se trata de um romance sobre o nascimento de um jornal. Este é um romance sobre o fim do “Amanhã”. É também o último livro de Umberto Eco, editado em 2015, um testemunho de desilusão com a Itália. “É só esperar: depois de se tornar Terceiro Mundo de uma vez por todas, o nosso país será plenamente viável, como se tudo fosse Copacabana”, lê-se numa das páginas.
“Número zero” é uma crítica severa ao jornalismo sensacionalista, dedicado, não a informar, mas a difamar, a manipular e a fazer chantagem. A acção decorre nos primeiros anos da década de 90, em que a operação “mãos limpas” parecia trazer uma luz de esperança à Itália, mas em que surgiu também Berlusconi. A personagem principal, Collona, parece inspirar-se em Carmine Pecorelli. Este redigia um jornal “clandestino” que enviava aos poderosos, ameaçando-os com a publicação de notícias sensíveis. Acabou morto, tal como alguém do “Amanhã”.
Considerando a obra de Umberto Eco, este talvez seja um romance menor. Falta-lhe o universalismo. O autor perde-se em longas páginas a particularizar o caso italiano, quando os temas que trata são pertinentes em muitos outros países. Como não pensar nas tentativas de controlar a imprensa em Portugal, ou no ex-primeiro ministro detido, ou em todos os papers que têm surgido.
Se lhe falta universalismo não lhe falta pertinência. Para os que se ocupam das questões da comunicação social, é uma obra fundamental; para os que se preocupam com o futuro da democracia, é uma obra que pode sugerir importantes reflexões: para os que querem passar umas horas entretidos com uma boa prosa, é bem escrito e actual.
“Número Zero”
Umberto Eco
Gradiva
2015