“A escravidão sexual está-se a tornar cada vez mais popular no território controlado pelo Daesh”. Fico perturbada com esta afirmação, que torna algo horrendo num facto supostamente normal ou comum. Pior, o Estado Islâmico já editou um manual oficial que estabelece as regras para o tratamento que deve ser dado às escravas sexuais, publicado a 29 de janeiro deste ano. De acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. No entanto, e pelos vistos, não é o que acontece na realidade atual. As mulheres continuam a ser tratadas, em muitos países, como seres inferiores, sem direitos. Não estou a defender o feminismo, mas também não posso concordar com a submissão de seres humanos em relação a outros. Não é, simplesmente, humano e/ou digno.

De entre as regras estabelecidas no manual, saliento a ideia cabal de que a mulher é apenas um objeto ao serviço do homem ou, neste caso, do “dono” ou “donos”. No entanto, e segundo o manual, há uma regra que se salienta: “o dono de uma escrava deverá mostrar compaixão por ela, ser amável, não a humilhar e não lhe exigir trabalhos que esta não possa [ou não saiba] fazer”, na medida em que, na minha perspetiva, é contrária a todas as outras e tenta suprimir todas as regras que tornam a mulher submissa, reprimida e escrava sexual.

Há alguns dias atrás saiu uma reportagem que tinha como título “A violação como arma de guerra: os filhos do Estado Islâmico” e que vai ao encontro do manual editado em janeiro. Obrigam as mulheres a usar contracetivos, mas há muitas que ficam grávidas na mesma. As que conseguem escapar desta prisão ficam marcadas para a vida. Muitas das mulheres que fogem engravidaram, vítimas de violação. O uso da violação como forma de guerra é um conceito já antigo do Estado Islâmico, mas continua em voga. Como referido, o Estado Islâmico obriga muitas das mulheres yazidi (comunidade étnico-religiosa curda cujos membros praticam a religião sincrética do iazidismo, sendo que a maior parte dos seus membros vive ou é originária da província de Ninawa, no norte do Iraque) que rapta a usar contracetivos, isto porque apenas querem garantir que o comércio das mulheres não é perturbado pela gravidez. Não só o próprio conceito de comércio de mulheres causa repugnância, mas também o facto de estas mulheres serem submetidas a tortura física e psicológica. Parece impossível que em pleno século XXI se continuem a assistir a realidades tão degradantes.

Exemplo desta atualidade hostil é Khaula, que foi obrigada a ter um filho do homem que a comprou e que a tornou supostamente, por ter engravidado, numa mulher sem valor, de acordo com os princípios do Estado Islâmico. Sarcasticamente ou não, o seu estatuto melhora porque, como mãe, fica numa posição situada entre a de escrava e a de mulher livre. Entretanto, e como a família lhe dizia que não queria um filho do Daesh, Khaula resolveu abortar, acabando por se arrepender e considerando ter assassinado uma criança. Depois do enterro, o tio matou um cordeiro como expiação e Khaula foi para Lalish, um local sagrado yazidi, para se “limpar”, onde recebeu uma bênção de Baba Sheikh, líder espiritual yazidi, que desde 2014 acolhe mulheres violadas de volta à comunidade. Pergunto-me qual não terá sido a coragem desta mulher ao concretizar um aborto, que provavelmente não faria, se a criança não tivesse sido concebida de forma tão cruel, fria e sem qualquer tipo de amor ou desejo.

Os homens do EI selecionam constantemente mulheres e levam-nas para serem violadas e vendidas, de forma dolorosa e sem escrúpulos. Em forma de argumentação, usam o islamismo como desculpa para as atrocidades que cometem. É lamentável que estas situações continuem a acontecer e que as mulheres tenham de fugir e ter a sorte de serem encontradas por pessoas que não simpatizam com o Daesh. É lamentável que não se tomem atitudes mais drásticas relativamente à escravatura sexual. A violência sexual deve ser condenada, de modo a não representar qualquer tipo de impedimento para a inserção plena da mulher na vida social, política e económica. Também o Papa Francisco sustenta que o ser humano deve atuar e que não é suficiente reconhecer o contributo das mulheres nas várias áreas do agir. Neste sentido, também Lincoln dizia que “aqueles que negam liberdade aos outros não a merecem para si mesmos”, mas para que estas situações possam terminar, as organizações internacionais, governamentais e não governamentais devem intervir. Já existem movimentos em ação, como a Aliança para Abolição da Escravidão e Tráfico, a Aliança contra o Tráfico de Mulheres, a Aliança Global Contra o Tráfico de Mulheres, a Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol). Contudo, e apesar dos esforços, parece que não chega.

Em suma, os líderes do autoproclamado Estado Islâmico tornaram a escravatura sexual parte integrante das operações do grupo, aproveitando-se das mulheres e raparigas da minoria religiosa yazidi e ninguém os parece conseguir parar. Com efeito, não temos propriamente a solução ao nosso alcance, mas podemos contribuir ao ficarmos informados, ao apoiar grupos já existentes, ao interceder pela existência de leis que proíbam este tipo de práticas, ao fazer doações. Ajudar está a um passo de distância.