De um lado, o edifício vermelho do tribunal; do outro, a casa que é um casulo, que é o Casulo, e que já foi o refúgio do pintor Malhoa. As folhas dançam com o vento, os cabelos fogem na mesma direção e impelidos pela mesma força. Finalmente está calor. É um domingo à tarde, o dia 22 de maio é solarengo. Muito quente. E a água corre na fonte. Mas não é tempo de refrescar. Nem nos podemos perder no som do vento que bate na cara e aguça o apetite pelo sol. A música hoje é outra. E por isso seguimos estrada fora. Uma creche à esquerda, seguida de mais uma escola; o edifício da Casa do Povo à direita, seguido das instalações do Centro de Emprego. Por fim, vemos o edifício da Pré-Escola e sabemos que estamos perto. Rodamos o pescoço para a esquerda e lá está mais uma escola – aquela que procuramos, a que serve de espaço de ensaios à Orquestra Consequência, em Figueiró dos Vinhos.

“Somos uma associação muito pequenina, nascemos com muito poucos recursos”, confidencia o diretor musical Miguel Rijo, de 36 anos. Ainda menor é a pontualidade – o ensaio deveria ter começado às 15h00, mas os ponteiros dizem que já passam quase 30 minutos da hora marcada. “É sempre assim”, suspira a flautista Andreia Hortelão, a partir do interior do seu carro. É aí que se refugia do sol, enquanto espera que apareça alguém que tenha a chave que abre a porta da sala. O pai, Joaquim Hortelão, saxofonista e presidente da associação, sai do carro para acender um cigarro e, enquanto as beatas vão caindo, outros executantes vão aparecendo. Forma-se uma roda de músicos junto ao carro que antes servia de proteção e que agora parece transformado num ponto de encontro, em que se partilham histórias do que aconteceu durante a semana. Os carros que vão chegando apitam e há braços que saltam janela fora para acenar, como quem grita de felicidade “Cheguei!”. Ou “Tenho a chave! Bora!”.

A música da orquestra chegou aos ouvidos dos figueiroenses em 2010 ou 2011… Nem o diretor musical sabe ao certo. Mas isso também não importa porque, do início, há outras histórias que importa realçar. A ideia partiu do homem que há pouco estava a fumar e que convidou Miguel Rijo para a direção musical. Ideia definida, eram precisos instrumentos para fazer a música soar. Acabaram por ser comprados “a muito custo”, por cada um dos executantes da formação inicial da orquestra. E ainda sem estarem no palco, onde é que iriam ensaiar o repertório para lá chegarem? A resposta, recorda Miguel Rijo, passou por remodelar “um barracão, que era um galinheiro da família Camoezas”, os mecenas. Lá dentro chovia e isso não era bom para os instrumentos. Nada bom.

O grupo foi crescendo em número de participantes e a Câmara Municipal facultou um espaço para os músicos poderem trabalhar – o espaço foi uma escola (uma das muitas que fecharam há anos devido à falta de alunos). Mas enquanto os instrumentos se abrigavam da chuva, a vontade de fazer mais despoletava, o que fez com que a associação crescesse em termos de áreas de atuação. Assim nascia a escola de música Academia Futuro. Hoje em dia, a Academia conta com “algumas dezenas de alunos”, o que veio criar a necessidade de uma espaço maior para trabalhar – é a escola em que hoje nos encontramos, também conhecida, entre a população, por “Escola número um” ou “Escola do Cabeço”. Aí recebem-se aulas de formação musical e também se aprende a tocar instrumentos, como flauta, guitarra, bateria, saxofone, piano, acordeão… Alguns dos músicos da orquestra são professores na Academia e alguns alunos da Academia tornaram-se músicos da orquestra.

É o caso de João Costa, de 19 anos, guitarrista que se juntou ao grupo em setembro. “É uma motivação para tocar mais e melhor. Se não, não tinha nada… era só tocar para mim e não valia a pena”, reconhece. A orquestra acaba por ser um espaço onde João pode aplicar os conhecimentos que adquiriu enquanto aluno da escola de música. Enquanto aluno do professor Miguel Rijo.

E foi precisamente o diretor musical quem trouxe a chave hoje. Os instrumentos já começam a aquecer – sinal de que já foram montados; sinal de que já há malas de instrumentos espalhadas pelo chão, por entre os cabos de amplificadores e microfones. Há 12 cadeiras dispostas em arco (nos melhores dias, são perto de 20) viradas de frente para um quadro de giz, para o baterista e para Miguel Rijo, mas nenhuma delas é ocupada por Filipe Abreu. O vocalista de 33 anos espera que chegue a sua vez, encostado a um canto, já de microfone na mão. Para Filipe, participar na orquestra “é um desafio”. Já fazia parte de outra banda há alguns anos, mas não hesitou em dizer “sim” quando Miguel o convidou. Sim, aqui os instrumentos partilham, por vezes, o espaço com a voz. E a voz pode entoar no masculino ou no feminino (quando personificada nas saxofonistas e cantoras Rita Gonçalves e Sofia Rijo). E pode ser dita em português, quando se escrevem “Cartas de Amor”; em inglês, quando se reza “Get Lucky”; ou em espanhol, quando se implora um “Besame Mucho”.

Estes temas são exemplos das músicas que a Maria Beatriz, de 14 anos, vai aprendendo a tocar, com um conselho aqui e outro acolá da parceira de flauta Andreia Hortelão. A Maria revela que quando há concertos se sente “muito, mas mesmo muito nervosa”. É o palco que a tranquiliza. Por outro lado, e para minimizar a potencial ansiedade, pertencer a esta associação acaba por ser um dois em um: “socializar e tocar”.

Socializar. A palavra atravessa todas as etapas da nossa vida. Já Aristóteles dizia que, na essência, somos animais sociais. “O importante é a associação em si. Quer se trate de um clube de futebol, de uma seita, ideia política ou outra coisa… o importante é estar-se associado a qualquer coisa”, defende o professor da Universidade do Minho Jean-Rabot. Miguel Rijo vai ao encontro do sociólogo e afirma que “temos necessidade de pertencer a algo que seja um pouquito maior do que nós próprios e que nos preencha… e que nos encha o ego… e o orgulho”, remata sorrindo.

Mas não é só diversão que a pertença a um grupo de cariz cultural pode trazer a quem dele faz parte: “As empresas estão conscientes que o aspeto funcional não é suficiente. É preciso, dentro de uma empresa, pessoas que saibam rir, que sejam animadas, inventivas, criativas”, continua Jean-Rabot. Assim, hobbies como a orquestra tornam-se mais-valias para os currículos profissionais.

Às vantagens soma-se o encontro de gerações. Na outra ponta do canto da sala em que Filipe continua à espera de cantar, estão Luisete e Francisco Hortelão. Além de fiéis espectadores, são pais do presidente da associação e avós dos executantes Andreia e André Hortelão. “Gostamos muito de música”, confidencia Luisete. E Francisco segue-a: “E a gente gosta tanto de assistir aos ensaios como aos concertos. E fazemos tudo para que cá estejamos muito tempo e para que isto continue… para que a orquestra não morra.”

Filipe acredita na continuidade do projeto, que caracteriza como algo “diferente e divertido”. Aliás, “divertido” é o adjetivo que todos escolhem para descrever o ambiente no grupo. João Costa vai mais longe e afirma sentir-se “em casa” nestas quatro paredes. As paredes em que se experimenta, tenta e volta a tentar, com os papéis pousados nas estantes e preenchidos por pautas, bem como por alguns apontamentos de última hora feitos a caneta ou a lápis.

Não é hora de começar o ensaio porque a hora já passou há muito. Mas é o momento em que todos estão prontos, com os instrumentos aquecidos. Bem, talvez nem tudo esteja pronto… Discute-se o alinhamento do próximo concerto e fala-se sobre boleias. Sempre as boleias.

O diretor musical dá a entrada e hesita… está a tentar lembrar-se de como começa o tema “Drive Time”. Há vozes que de imediato cantam as notas, enquanto a mão bate na perna para marcar o ritmo. Miguel Rijo já se recordou: “Ok, ok. Um, dois, um e…” O trompete entra mal e desafina. Todos se riem. Bem alto. A diversão aumenta enquanto as gargalhadas vão entoando em crescendo. Passa algum tempo e todos se recompõem. Até os espectadores Luisete e Francisco. Desta vez vai sair tudo “direitinho”. Como o diretor sempre pede.