“A morte é um exagero, leva demasiado e deixa muito pouco”. É esse demasiado que Valter Hugo Mãe põe por escrito em “A Desumanização”. Faz-nos cair em inércia numa teia tão realista quanto assustadora. Nesta obra, passamos os olhos sob o luto, o amadurecimento precoce, a transição do ódio ao amor, as frustrações, as esperanças, os egoísmos e tudo aquilo que vem com o estar vivo.

Fonte: publico.pt

Fonte: publico.pt

O autor leva-nos até os fiordes da Islândia, onde conhecemos Halldora e a sua triste infância. Tem apenas 11 anos quando Sigridur, a sua irmã gémea, morre, e tudo que parecia estar escondido atrás da cortina da candura de se ser criança, é brutamente desvendado. A sua mãe era bêbeda e insensível. O seu pai, um pacato amante de histórias, fazia dos seus poemas um guia para a filha. Essa acreditava no milagre da “criança plantada” um dia germinar. Todos os dias visitava a sua irmã na esperança de um dia encontrar um rebento.

Einar, o rapazinho menosprezado por Sigridur, foi quem não largou Hall. Sempre de volta dela, ajudou-a a perdoar e a descobrir, cedo demais, o amor e o que acontecia dentro do seu corpo.

É Halldora que nos conta isto tudo. Ela cresce, age e reflete sozinha. Cria as suas conclusões e julgamentos, pelo que, severamente, observa e ouve. Apesar de, por vezes, como um vulcão, sentir toda a pressão da Ilha, tenta procurar a beleza em todas essas explosões. Depois de uma Primeira Parte de contínuo sofrimento, vem uma Segunda, onde a jovem aceita a tempestade e continua velejando na maré da sua vida. O aparecimento do elemento Espelho marca essa transição – acalma e ilude a família que nele crê ver Sigridur.

Outro assunto abordado nesta obra é a existência de Deus e a sua influência. Deus é frequentemente invocado nas reflexões de Hall: “Deus certamente bocejaria se visse o espectáculo das nossas vidas.” À medida que outras personagens vão aparecendo, Halldora observa-as e elas tornam-se matéria das suas teorias. Vê os seus hábitos, defeitos e vicissitudes, e repreende-os ao entender que a maior parte daqueles atos se tratam de conveniências e espreitadelas ao “prato” do vizinho.

Esta Desumanização não se faz num só folhear de folhas. É preciso ganhar coragem para nos colocarmos na pele de Halldora. No entanto, os pequenos capítulos e as frases curtas ajudam na compreensão mais leve da dureza das mensagens. A escrita de Valter Hugo é diferente daquelas a que estamos habituados. Ele é um pintor de sentidos. Visualizamos tudo o que ele nos transmite, através das sublimes metáforas, do uso recorrente de adjetivos e da pontuação não normativa, à semelhança de Saramago.

Os aspetos apontados ao ser humano não dizem respeito a nenhuma cultura específica ou contexto histórico, são comuns a todos os indivíduos, ao que lhes é intrínseco – a sua desumanidade. Para aqueles que não fecham os olhos à realidade negra da natureza humana, recomendo esta leitura.