No início do mês, o prémio Nobel da Literatura foi atribuído, pela primeira vez, a um músico: Bob Dylan. “Por ter criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição da música americana”. Mas, apesar do imenso mérito de Dylan, literatura é literatura. Não mudemos os tempos.
Sei que vou ouvir muitas opiniões divergentes quanto a este tema. Mas como leitor ávido (tento sê-lo, tanto quanto o tempo mo permite), sinto-me perplexo pela decisão da academia sueca encarregue de entregar os prestigiados prémios Nobel. Muitos ficaram alegremente surpreendidos. Eu prefiro o cepticismo.
O prémio Nobel da Literatura é entregue, desde 1901, a indivíduos que tenham “produzido, no campo da literatura, trabalho extraordinário”, segundo as palavras de Alfred Nobel. Entre a extraordinária lista de laureados estão Pablo Neruda, John Steinbeck, Ernest Hemingway, Albert Camus, Gabriel García Marquéz e o nosso José Saramago. A lista de escritores excelentes, para os quais olhamos nos dias de hoje como exemplos, continua.
E eis que chegamos a 2016 e, pela primeira vez, um músico recebe o prémio mais importante na história da literatura mundial. Não me levem a mal, não estou contra uma nova mudança nas escolhas da academia. Se acho que a música devia ser considerada para um prémio pela academia Nobel? Sem dúvida. Muitos músicos e compositores merecem ser premiados pela forma como contribuíram para a exposição de problemas sociais, ou simplesmente pelo brilhantismo nas suas letras/composições e nas melodias que inovaram, seja em que estilo for. Se Bob Dylan não fosse considerado, nomes influentes como Roger Waters, Paul McCartney, Nick Cave, Leonard Cohen, Willie Nelson, saltariam imediatamente à baila, pois influenciaram gerações de músicos.
Mas o que eu não concordo é com a mistura entre literatura e música. Claro que há formas de literatura dentro da escrita lírica musical. Mas misturar seria desfazer uma exclusiva proclamação àqueles que conseguem transformar simples palavras escritas num mundo nas nossas mentes. O mundo mágico da literatura é a forma de expressão que mais puxa pela nossa imaginação. Se nunca o fizeram, leiam “100 Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez. Nunca me senti tão criativo, tão genuinamente emocionado, e tão aleado em toda uma nova dimensão, como quando li esse livro.
A literatura traz algo para a mesa que a música nunca conseguirá. E quer queiramos, quer não, atribuir uma tonalidade maior ou menor é automaticamente embutir a letra de um significado que restringe imenso a interpretação que cada um vai ter. Com um livro, damos a voz que quisermos, a quem quisermos, onde quisermos. Com uma música, podemo-nos sentir mais ou menos tocados, mas sabemos o que podemos ou devemos sentir.
E há mais uma razão que me leva a pedir a exclusividade do prémio Nobel da Literatura, mais cínica e pessoal, que me leva a questionar esta escolha. O prémio Nobel só pode ser atribuído a pessoas que ainda vivem, e com isto deixo apenas duas observações: Milan Kundera (um dos mais brilhantes escritores do século XX, com um trabalho desenvolvido durante a Primavera de Praga, e a ocupação comunista na República Checa) tem 87 anos; Philip Roth (um dos melhores escritores americanos da segunda metade do século XX, e vencedor de um Pulitzer) tem 83. Não quero ser pessimista, até porque Kundera é o meu escritor favorito e quero que viva muitos anos. Mas arrisco-me a dizer que, caso estes senhores não ganhem o Nobel, podem-se juntar a Tolstói ou Émile Zola, que morreram antes de poderem ter sido galardoados (Zola foi nomeado em 1901 e faleceu em 1902, enquanto que Tolstói foi nomeado entre 1902 e 1906, mas faleceu em 1910).
Bob Dylan é um compositor de letras brilhante? É, sem qualquer margem para dúvidas. Mas colocar a sua condecoração ao lado de 115 anos de literatura, agora, não é satisfatório para a minha pessoa. A magia de um contador de histórias, que procura imprimir no texto certas sensações e imagens, é única. Não se consegue passar a literatura em notas musicais, e quando se passa livros para filmes, falta sempre algo, sempre algum aspecto ou caracterização, que só nós, individualmente, conseguimos apontar.
O Nobel é literário. Deixai para os livros o que dos livros é. E criai uma homenagem à música, que dignifique a extraordinária forma de expressão que é a música. Porque merece, desde sempre.