Na “Tasca Expresso” não se acredita que alguém possa contar a história do Pinheiro, nem o simbolismo das Festas, nem outra coisa qualquer. Quem diz o Pinheiro, diz as Nicolinas. “Não há a História, há estórias e quem diz que sabe a História está a mentir”, diz Clemente, o homem que faz e serve o que põe na mesa. Cá fora, há quem discorde e vá mais longe: “Só há cinco pessoas que podem falar das Nicolinas em Guimarães. Uma delas está aqui ao lado”.
“Aqui ao lado” é a “Pastelaria Brasília”. O largo da República do Brasil alberga dois espaços, que de tão diferentes que são acabam por ser paragens obrigatórias para fregueses diferentes. É que se na Tasca Expresso há tertúlias em volta de uma mesa com vinho da casa e queijos, as do vizinho são à base de “muitas matérias”. Capela Miguel discute estas matérias com quem aparecer no “escritório” improvisado.
Antropólogo, professor, dramaturgo ou ator. Capela Miguel junta a tudo isso o trabalho de guiar os turistas pelas ruas, que durante uma semana vão servir de casa a muitos vimaranenses. Quando fala do tempo que passou a servir as festas de São Nicolau, há esperança e emoção na voz cansada de um homem que dedicou 50 anos de vida a essa causa. “Agora a minha luta é por fora. Há sete anos que é assim” O objetivo: levar as Nicolinas a Património Imaterial da Humanidade. Já esteve mais longe.
É que Guimarães já submeteu a inscrição das festas Nicolinas no Inventário Nacional do Património Cultural e Imaterial, cumprindo uma primeira meta para a eventual candidatura a Património da UNESCO. O processo já leva dez anos. O estudo antropológico foi apresentado em 2014, mas recebeu nova aparição pública, no dia 13 de dezembro, no Centro Cultural das Artes José de Guimarães. Maria João Nunes, integrante da equipa que fez o estudo, crê que “o processo de candidatura à UNESCO é muito complexo”. As festas, admite, “têm um potencial muito interessante. Mais não seja para o Inventário Nacional”.
Quando a Morte bater à minha porta Morrerei eu… mas não o Nicolino!
Textos de Meireles Graça
Razões para falar de Património há muitas. Eliseu Sampaio, diretor do grupo Mais Guimarães, assinala uma: “não há, em Portugal, manifestação académica tão rica nem tão antiga”. A origem das Nicolinas é incerta, mas afirmou-se como referência no ano de 1664, data que começou a ser construída a Capela de São Nicolau, patrono dos estudantes e protetor dos pobres e desprotegidos.
As celebrações foram sempre organizadas por estudantes: até 1982, eram apenas os alunos do Liceu de Guimarães os encarregados, mas desde então passou a fazer-se uma Comissão eleita anualmente com alunos (só homens) de diferentes Escolas Secundárias de Guimarães. Jerónimo Silva, desde o balcão da sua loja de ferragens do Toural, não concorda com isto: “houve a unificação e, hoje, qualquer merda vai ao Pinheiro, até crianças. Se me perguntassem a mim se eu acho bem, eu não acho”.
As Nicolinas são das poucas festas que nunca foram interrompidas por qualquer perturbação política. Lembra-nos Capela que esta “era uma festa elitista, era só para os jovens da burguesia, os que tinham estudos. Só com o 25 de abril é que a festa se abriu a toda gente”. Com os Cravos a liberdade chegou a Guimarães e, com a universalização do ensino, mais gente chega ao cortejo: de 200 para 20000 em três anos.
E assim, com mais ou menos turbulências, a festa manteve, até hoje, a sua “boa saúde”, como assinalam Paulo César Gonçalves e Gabriela Cunha, autores do Guia Nicolino da Mais Guimarães. Mesmo assim, acrescentam que “à cautela, devemos vigiar. Há muito a melhorar, para que o futuro as (a)guarde”.
De pito para galo numa noite
De todos os festejos Nicolinos, o primeiro é sempre o mais participado. A antecipação reina em Guimarães. Quando o sol nasce, no dia 29 de novembro, o Pinheiro sente-se na cidade, como se as raízes da árvore estivessem a fazer pressão lá no fundo para a desprender do chão das ruas. Uma magia que a gente vimaranense conhece há alguns séculos. O Pinheiro é isso: uma questão de raízes, de orgulho.
Na Brasília avisa-se: “é um dia especial”. O dia em que Guimarães não dorme. E na manhã seguinte a vida continua: com olhos cansados, Maria de Fátima, que nunca “salta Pinheiros”, vende chapéus na loja “Júpiter”.
Em Guimarães, vivem uma espécie de Natal antecipado. “Eu, como membro da Irmandade de São Nicolau, convido os pequenos e digo-lhes: ‘hoje é um dia mágico, porque toda a família vai estar na rua’”. Capela Miguel fala-nos do Pinheirinho, uma recriação do Pinheiro, para que as crianças possam também sair às ruas e festejar, para começarem logo a entrar no espírito das Nicolinas. É importante entender que uma festa estudantil, como o Pinheiro, é de todos os estudantes. “Nesta noite tudo o que é adolescente vem para a rua. Os novos pedem autorização aos velhos. A passagem de pito para galo”, explica.
É o tiro de partida para as Nicolinas. Aqui começa tudo e a excitação já está no ar. “É o meu primeiro dia do ano”, diz-nos Capela. Em qualquer canto desta cidade, há cores vermelhas, brancas e verdes e nos ouvidos começa a barulhar o bater de madeira contra a pele. Atrás disto não há ciência, mas há factos que ajudam a entender o som que ecoa pela cidade berço. E antes do grande apogeu, os bombos rufam: nos novos, nos velhos, nas lojas, nos bares, nas ruas…
Hoje, quando Maria de Fátima sair do trabalho, vai cear com o seu grupo, como faz desde 1987. As ceias Nicolinas antecedem o Pinheiro. Sarrabulho, rojões, leite creme, castanhas. Numa noite “não há uma comunidade que ganhe tanto dinheiro como a nossa”, refere Jerónimo a partir de outro recanto do Toural.
Os restaurantes cheios e as ruas mortas às 20 horas são a prova disso. É uma noite para comer e, sobretudo, para beber. O álcool é um elemento fulcral desta festa, mas situa-se num limite perigoso entre a essência da tradição e aquilo que a perturba.
Nicolinos à frente, nicolinas atrás
Com um crescimento tão grande, é natural que se perca a mão a muitas coisas. Maria de Fátima reconhece que “há cafés que fecham porque como há muita gente, perdem um bocadinho de controlo da situação”. Por este ou outros motivos, também há quem não celebre muito o Pinheiro. A tasca de Clemente apaga as luzes às 20.30 horas, como em qualquer dia.
Na luta pelo Património, Capela assume-se como o mais responsável na batalha contra o fantasma do álcool. “Foram aplicados modelos de praxe que interferiu na tradição dos novos. O problema do álcool é consequência disto”, afirma. Maria de Fátima fala de medidas de prevenção: “vai muita gente bêbeda em coma para o hospital e há um ambulatório próprio só para eles”.
Sempre que, nos últimos dez anos, se falou em dificuldades no processo de candidatura, dois fantasmas eram omnipresentes. Para além do álcool, estão as críticas vindas dos movimentos feministas. “O primeiro ano que eu entrei [no cortejo] foi em 1985 ou 1986, eu não podia tocar tambor nem caixa, nós mulheres tínhamos de ir atrás, aos saltinhos a fazer o toque”. Fátima não o diz como uma crítica.
Afinal, é tradição. Maria João Nunes oferece a sua visão antropológica: “Há festas que são feitas só por homens. As Nicolinas têm números em que as mulheres estão interditas e outros onde podem marcar presença. Veremos o que trás o processo evolutivo às festas Nicolinas”.
O que não se pode perder e uma vida dedicada a isto
Mas se o Pinheiro tem o nome e a gente, há uma celebração escondida no cartaz das Festas que é “dedicada às mulheres”. As Maçãzinhas, no dia 4 de dezembro, é o verdadeiro coração da festa. Para Capela é claro: São oito números, fazem-se todos menos as Maçãzinhas, e a festa não se cumpre.
Esta manteve-se. Mas foi a determinação que levou o agora guia turístico a “salvar alguns números”.”Eu estive na origem das danças. Comecei com 18 anos a fazer a reconstituição das festas”.
O à vontade que Capela Miguel exibe ao falar destes assuntos, é de quem já falou muito e a muita gente sobre isto. Afinal, foram cinco décadas de contacto próximo com estas gentes, estas memórias. Este conhecimento, dado pela experiência, permite-lhe assumir o título de “inspetor máximo”, mal comece o dia 29 de novembro.
“Quem quer que isto seja Património sou eu, não é o politico”, afirma durante mais uma tarde, no “Escritório Brasília”. É lá que recorda o “chamamento” dos velhos quando tinha 18 anos, e é lá que espera que uma vida dedicada a “isto” dê frutos.
Ana Miranda, Olalla Liñares e Pedro Esteves
Agradecimentos: Casa Júpiter, Tasca Expresso, Paulo Costa e Pastelaria Brasília