Numa jogada interessante e arriscada, os canadianos Austra lançaram em janeiro o disco Future Politics. Também neste dia se desenhava outra história – a de Donald Trump como 45º presidente dos (ainda) poderosos Estados Unidos da América. Poucos dias depois, as vendas do clássico distópico “1984”, de George Orwell, disparavam, numa popularidade não muito imprevista e nada alheia ao que foi, para muitos, o fim do mundo despenteado e em tons laranja. Tudo se encadeia, e a arte, independentemente da sua manifestação, acompanha sempre o desenrolar do novelo do mundo.

stereogum.com

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Antes da vitória de Trump, em 2016, já Katie Stelmanis, fundadora e vocalista da banda, tinha escrito todo o material que viria a compor Future Politics. Influenciada por leituras de obras que previam o mundo pós-capitalismo sem mão de obra humana, a canadiana, de origens letãs, compôs um álbum para se dançar e para se pensar no mundo político e social do depois de amanhã. Há, de facto, em Future Politics, um cunho futurista.

Utopia”, a terceira faixa, é o cerne do álbum e quase um “sumário” daquilo que se tentou explicar no parágrafo anterior. Facilmente uma das canções mais bem conseguidas no percurso dos Austra, “Utopia” emana glória, distanciando-se do dark-wave caraterístico da banda e adaptando sonoridades mais perto do dream-pop ainda assim sombrio. Sintetizadores brilhantes, uma voz de ouro sem medo de agudos e uma letra futurista. É fácil decifrar a alienação humana de que a utopia de Austra fala (“I live in a city full of people I don’t know/ People riding highways from the workplace to the home”) e a visualização de um futuro (“I can picture a place where everybody feels it too/ It might be fiction but I see it ahead”). Dentro da temática da alienação, é preciso saltar para a última faixa do álbum, “43”, que se baseia no desaparecimento de 43 jovens no México, acontecimento pouco difundido pelos noticiários. O alheamento à actualidade em forma de canção.

A canção que dá nome ao terceiro álbum dos Austra também aponta para esse futuro idealizado por Stelmanins (“There’s only way/ Future politics”), atirando ainda farpas ao sistema (“The system won’t help you when/ Your money runs out”).

A metade do caminho, “I Love You More Than You Love Yourself” destaca-se como o momento mais bonito do álbum, distanciando-se, curiosamente, do tema-padrão, e debruçando-se sobre relações problemáticas, depressivas e complicadas. O vídeo para esta faixa encaixa perfeitamente na letra, retratando o escândalo da astronauta norte-americana Lisa Nowak, que tentou raptar a suposta amante do homem pelo qual se tinha apaixonado.

E é na voz que também se encontra uma evolução dos Austra. Stelmanis, portadora de uma voz digna de um espetáculo de ópera (integrou, inclusive, um grupo de ópera infantil no Canadá), rompe dessa bolha e mostra a sua versatilidade enquanto cantora. Exemplo disso é “Beyond a Mortal”, a lembrar a sonoridade sexual de “Beat And The Pulse”, do primeiro álbum da banda, de 2011. O som dos Austra, esse, continua a distanciá-los do muito que se faz na música de hoje, mas aposta em camadas próximas ao techno e até ao house, limpando a densa atmosfera que se sente ao longo de todo o álbum.

A título de curiosidade, Austra é o nome para a Deusa da Luz da mitologia letã. Fica a pergunta: será a visão política e social assumida por Katie Stelmanis e companhia a luz a reluzir lá ao fundo, num mundo tão escuro e no qual, cada vez menos, se vê a verdade e a solução final para todos os problemas? Talvez. De qualquer das formas, “Future Politics” pode ser, como 1984 foi, um preditor do futuro – ainda que em escalas e tempos completamente distintos.