Numa sala escura, com luz vermelha e um relógio debaixo da mesa. Gonçalo Delgado, cresceu no laboratório de fotografia do pai e numa família de fotojornalistas. Rendeu-se ao processo “meticuloso” da analógica.

Gonçalo Delgado, fotojornalista freelancer, marcou presença nas XX Jornadas da Comunicação, organizadas pelo GACCUM, e, em entrevista ao ComUM, afirma que, hoje, a vida do fotojornalista está “muito mais facilitada”.  Se os fotojornalistas do passado tivessem as máquinas que temos hoje, eram todos “soberbos”.

ComUM: Então, hoje, qual é o fator diferenciador num fotojornalista?

Gonçalo Delgado: Não é todo o material, nem o sítio onde estás. Mas sim a tua visão do mundo e daquilo que está a acontecer à tua frente. Obviamente que terá muito mais impacto se o fotojornalista estiver numa zona de conflito ou onde a crise humanitária seja muito grande. Mas o difícil é fazer uma boa foto de um sítio onde não se passa nada.

A minha linha de fotografia não vai ao encontro da linha tradicional, para o bem e para o mal. Não me importa muito se estão focadas ou desfocadas, eu vou pelo feeling que a imagem me traz. Muitas vezes podem encontrar fotografias minhas muito tortas ou exageradamente desfocadas.

Essa é a linha que se vai fazendo, atualmente, em Portugal, não concordas?

Tendo a concordar e a discordar. Felizmente, cada vez mais, começa a haver uma linha de fotojornalismo em Portugal. Já se abre os olhos para outro tipo de fotojornalismo menos tradicional, como fizeram grandes mestres como o Alfredo Cunha. Já se abre o espectro para a fotografia mais conceptual ou artística, e é aí que eu me encontro.

Recentemente tive uma conferência de imprensa do júri do Prémio Estação Imagem e eles diziam ‘vocês têm uma tendência enorme para preto e branco’. Eu tenho uma explicação para isso: cresci num laboratório a preto e branco, tenho um ligeiro grau de daltonismo e, para além disso, torna-se mais difícil fazer uma boa imagem a preto e branco.

Nos últimos anos foste premiado no Estação Imagem, o que é que um prémio significa para ti?

Eu não valorizo muito os prémios. Acho que é algo em que devemos participar, mas devem servir para ajudar a canalizar o teu esforço para fazer mais e melhor. Podem ser importantes para algumas pessoas, com a massagem ao ego. Mas não estou a desvalorizar os prémios, de todo. Mas os prémios são bons quando te dão dinheiro para fazer os teus projetos, acho que devemos olhar para eles do ponto de vista profissional e não tão egocêntrico como acontece.

Então preferes modelos como a Bolsa Estação Imagem…

Isso é o mais interessante. Tens de te comprometer a fazer um trabalho ao longo de um ano, fazer de ti uma pessoa melhor enquanto fotojornalista. Acho isso mais interessante do que receberes só dinheiro ou um prémio, que sabe sempre bem.

Assumes-te como freelancer?

Sim.

Isso é uma opção ou necessidade?

É uma opção e uma necessidade. Claro que a estabilidade de uma pessoa ter contrato de trabalho é muito boa, a nível pessoal e privado. Mas é a partir destes trabalhos que conseguimos financiar aquilo que gostamos de fazer. É por isso que consigo ter uma empresa minha a funcionar para além do trabalho para os jornais. Mas ainda dá tempo para fazer aquilo que gostamos. Eu valorizo muito visual storytelling, que é muito mais interessante que é o trabalho noticioso. Agora ambiciono tornar-me mais um fotógrafo documental. Pela paixão pela coisa, mas em Portugal isso é completamente irreal.

Foste no ano passado para Lesbos, documentar a situação dos refugiados. Tiveste financiamento ou foste à tua conta?

Esse é que é o problema. Tu, como freelancer, ou já vais com uma coisa bem definida, ou atiras-te de cabeça e fazes. Eu não fui para Lesbos com o intuito de publicar, eu fui para ter uma noção daquilo que toda a gente falava na televisão, para perceber que não tinha rigorosamente nada a ver com o pânico que os canais de televisão passavam. Conheci lá gente que hoje posso apelidar de meus ‘heróis’.

Trouxeste de Lesbos mais do que fotografias.

Eu trouxe tudo menos fotografias. Trouxe algumas imagens, alguns momentos, mas sem o intuito de obsessivamente vender. Aliás, falei com duas ou três publicações para comprarem o trabalho.

E compraram?

Não. O panorama do fotojornalismo documental, em Portugal, é uma mentira e não valoriza o teu trabalho. Estive lá [em Lesbos], acho que fiz um trabalho interessante porque não fui com uma visão de fotografar a desgraça total e fazer imagens demasiado gratuitas.

Tentaste dar alguma dignidade às pessoas.

Sim. É um bocado estranho estares com fotógrafos numa praia, vês um barco de borracha com mais de cinquenta pessoas a chegar e tu fotografas a situação. Um miúdo cai à água, a sair do barco, começa a chorar, e eu, que faço a imagem, sei o que se passou, chego a casa passado duas semanas, as legendas são ao estilo: ‘criança cai em hipotermia dentro de água’. A manipulação é um bocado assustadora. 99,9% das vezes são pessoas felizes e contentes porque chegaram à costa. Conheci um miúdo afegão que esteve 34 dias em alto mar e isso muda um bocadinho a perspetiva de vida das pessoas.

Eu achava que tinha um escudo, uma máquina fotográfica que me tapa a cara quase toda. Mas não tens [escudo], as coisas passam para cá e tu tremes. Várias vezes.

Como é que são recebidos os jornalistas? Há hostilidade?

Nada. Só uma única pessoa me pediu para não ser fotografada. Porque quase todos querem ser mensageiros do que está a acontecer. Estive com uma família afegã e só me agradeciam, diziam ‘thank you, brother, thank you, brother’. E eu perguntei o porquê de me estar a agradecer. Ele só me disse: ‘tu estás a tornar isto real, não é uma fantasia das nossas cabeças, eu só queria estar na minha casa, mas está em pó’. Ouvires isto da boca de uma pessoa que está a chorar… Não há mesmo explicação. Começas a olhar para as pessoas que estão na água e começas a imaginar os teus amigos e os teus familiares.

Num contexto como este, é inevitável que o jornalista vista a camisola de uma causa e seja pouco ‘ativista’?

Há sempre duas ou três formas de fazer as coisas. Deve ser tão valorizado o fotógrafo que vai lá e retrata a realidade nua e crua, como aquele que tenta transparecer a imagem de uma história mais ou menos comovente. A única coisa que eu não aceito, de todo, no jornalismo, são as imagens gratuitas. É tu aproveitares-te do momento para criar choque gratuito. Um exemplo muito prático: uma foto de um miúdo morto na praia e um polícia a olhar para trás.

Todos sabemos que aquilo é uma imagem que te vai corroer por dentro. Agora pondo isto em perspetiva, nós, europeus, somos maioritariamente de raça branca. Será que a imagem tinha o mesmo impacto se fosse [um miúdo] negro?

Há outra foto muito icónica, do Yannis Behrakis, da Reuters. Isso para mim tem muito mais impacto que a foto do miúdo, essa é uma foto que dói de ver… Não tem de ser tão gratuito.

Tu não publicavas?

Não. Numa situação destas é muito mais importante uma pessoa [fotojornalista] ter uma consciência social e fazer um trabalho como eu tentei fazer. Um trabalho de dentro e de esperança. Focalizei-me no tão bom prazer que é estar vivo. O tal miúdo afegão que conheci, com dez anos, diz-me: ‘demorei 34 dias em alto mar para chegar, estou aqui há dez, os meus pais vinham num barco ao lado que nunca chegou’. E tu levas um murro no coração, no estômago, onde tu quiseres. Cai-te tudo. Só te apetece abraçar as pessoas. E ele estava lá a brincar como se nada se passasse, feliz, simplesmente por estar vivo.