Kendrick Lamar, um dos rappers mais aclamados do momento, reforça o seu estatuto com o lançamento de DAMN. O hip-hop é um género que não agrada a todos da mesma forma, mas Kendrick ultrapassa as barreiras do gosto musical, provando ser um poeta universal. A mensagem que quer transmitir é dirigida a um todo, à humanidade. O hip-hop é apenas o veículo de transmissão de algo maior, superior a ele mesmo enquanto artista e pessoa.
DAMN. é o quarto álbum de estúdio de Kendrick Lamar. A capa, aparentemente simplista, passa uma mensagem de urgência com o título “DAMN.” escrito a vermelho e em maiúsculas. Ao longo do álbum, torna-se claro o porquê desta escolha: refere-se às frustrações vividas pelo artista, as dicotomias de uma vida inicial de pobreza e violência, e das tentações difíceis de resistir do presente.
A primeira faixa, “BLOOD.”, começa com harmonias ondulantes proporcionadas por Bēkon, impondo uma questão que se prova fundamental ao longo de todo o trabalho: “Is it wickedness?, is it weakness?”. Kendrick assume o papel de narrador, e apoiado pelas melodias do baixo, conta uma história baseada na obediência a Deus. A faixa termina com um sample de um clip em que repórteres da FOX News criticam a letra de Alright: “Lamar stated his views on police brutality with that line in the song, quote: «And we hate the popo, wanna kill us in the street fo’ sho’…» Oh please, ugh, I don’t like it”. Kendrick defendeu-se dizendo que foi mal interpretado, acusando os jornalistas de deturparem por completo a mensagem da música.
“DNA.” obriga-nos a parar e a realmente escutar o que é recitado. Com um beat fortíssimo e insistente, Kendrick demonstra as suas skills exímios de rap. Como crente que é, acredita que o seu propósito na terra é ser a voz da comunidade que representa. Explica as suas origens e o orgulho que nelas sente, abordando como foi crescer em Compton: “I know murder, conviction, burners, boosters, burglars, ballers, dead, redemption, scholars, fathers dead with kids, and I wish I was fed forgiveness, (…) soldier’s DNA, born inside the beast”. Inclui mais uma vez um sample do comentário dos jornalistas da FOX News, intercalado com vários versos que se atropelam propositadamente entre si: “This is why I say that hip hop has done more damage to young African Americans than racism in recent years”.
Numa abordagem mais relaxada, simples, mas complementada pela incrível produção de todas as componentes musicais, chega-nos “YAH.”. Um tema espiritual, religioso, com destaque dos valores familiares. Menciona radares que demonstram que Kendrick se sente consciente do que o rodeia. A própria palavra “yah” refere-se a Yahweh (יהוה), que se acredita ser a expressão mais próxima do verdadeiro nome de Deus.
Juntamente com James Blake, escreveu “ELEMENT.”, quarto single do álbum. Kendrick afirma a sua frustração, é um líder que espalha uma mensagem socialmente consciente, mas quem o defende a ele? “So ain’t nobody praying for me (…) I don’t do it for the ‘Gram, I do it for Compton, I’m willing to die for this shit”. O jogo de silêncios no acompanhamento musical serve de elevador ao que é dito, ajuda a destacar a letra. Utiliza sons atonais, sintetizados e eletrónicos, ritmos complexos para afirmar que é o melhor rapper do momento.
Com “FEEL.”, insiste na mesma frustração abordada na faixa anterior, expressa a injustiça sentida na indústria musical, e no mundo em geral. Fala dos demónios que encontrou com a fama e com o sucesso, e do seu historial de depressão e de pensamentos suicidas. Dirige-se à América dos tempos da escravatura (“I feel for you, I’ve been in the field for you”), comparando-a à América atual de Trump (“The feelin’ of false freedom”). Mais ligado ao soul, a batida tem um papel importante.
Resultante da primeira colaboração de Kendrick com Rihanna, surge “LOYALTY.”. Em comparação com as restantes faixas, soa mais comercial. Baseia-se nos valores de honestidade e lealdade, quando o sucesso e a fama primam. O mais interessante deste single, é o seu intro ser composto por um sample alterado da “24k Magic” do Bruno Mars, interpretado por Mr. Talkbox.
É a vez de “PRIDE.”, uma faixa introspetiva sobre um dos sete pecados mortais, o orgulho: “but pride’s gonna be the death of you (…) and me”. Steve Lacy fornece um contributo fenomenal, brindando-se com a sua voz frágil, perfeita para este single. O pitch vocal vai subindo e descendo ao longo dos versos para realçar os contrastes narrados por Kendrick. Fala-nos sobre temas como a discriminação e o racism (“I know the walls, they can listen, I wish they could talk back (…) race barriers make inferior of you and I”).
Segue-se o primeiro single lançado, HUMBLE., sendo o mais popular do álbum até ao momento. Isto deve-se em grande parte ao sucesso do videoclip correspondente, realizado por Dave Meyers e The Little Homies. Tem uma batida simples, mas que resulta muito bem. Mais uma vez, dirige-se à concorrência, “be humble, sit down”.
“LUST.” é mais uma faixa incrível. Descreve a monotonia da vida de um rapper (“Wake up in the mornin’, thinkin’ ‘bout money, kick your feet up”) e a intimidade sexual que integra essa monotonia (“as blood rush my favourite vein, heartbeat racin’ like a junkie’s, I just need you to want me, am I askin’ too much?”). Apesar disto, não deixa de falar de assuntos importantes como política e religião: “lookin’ for confirmation, hopin’ election wasn’t true”.
Um dos versos – “lately, it’s all contradiction” – introduz a faixa que se segue, “LOVE.”, sendo a luxúria e o amor duas contradições evidentes. Com participação de Zacari, o primeiro verso de “LOVE.” é “Damn, love or lust”, confirmando o contraste. Uma balada escrita numa tonalidade maior, com uma sonoridade mais smooth. Acredita-se que é dedicada à noiva de Kendrick, Whitney Alford, a sua “high school sweetheart”.
Numa colaboração algo invulgar com os U2, surge “XXX.”. Musicalmente riquíssima, é uma faixa que aborda temas como a vingança, a morte, a hipocrisia, a supremacia dos brancos e o Black Power. Kendrick fala dos seus conflitos interiores, quer sempre praticar o bem, mas acaba por se sentir assoberbado com toda a responsabilidade: “(pray for me) Damn!”. Quando a voz de Bono entra, o ritmo acalma e a sonoridade torna-se mais envolvente.
Em “FEAR.”, tal como o título indica, expõe todos os seus medos. Numa vibe mais próxima do soul, a peça começa e termina com excertos de uma mensagem de voz real do seu primo Carl Duckworth. Questiona Deus acerca do seu sofrimento: “Why God, why God do I gotta suffer?”. Ao longo das estrofes relata o seu historial de medos. Na primeira estrofe, aos sete anos de idade, conta o medo que sentia da mãe. Na segunda, aos 17 anos, receava morrer devido à violência de gangs em Compton ou à violência policial. Na terceira, aos 27 anos, tinha medo de perder o sucesso conquistado. Na quarta e última, fala daquilo que o assusta no presente: o medo de perder a sua criatividade, amor, a sua lealdade e humildade. Nesta estrofe é interessante verificar que são mencionados oito títulos constituintes do álbum: “DNA.”, “HUMBLE.”, “LOVE.”, “FEAR.”, “FEEL.”, “LOYALTY.”, “PRIDE.” e “GOD.”.
Na penúltima faixa, “GOD.”, compara o seu sucesso à sensação da crença em Deus: “what God feels like (…) y’all gotta see that I won, man”.
Não existe melhor forma de terminar um álbum desta magnitude. “DUCKWORTH.” é uma composição fenomenal que relata uma história ainda melhor. Kendrick inicia-a com mais uma excelente intervenção de Bēkon e Kid Capri, seguindo-se um excerto da “Be Ever Wonderful” de Ted Taylor (1978). “Life is one funny mothafucka, a true comedian”, afirma o artista, iniciando assim a história que nos quer contar. Explica a origem de Anthony “Top Dawg” Tiffith, fundador da Top Dawg Entertainment que assinou com Kendrick quando o mesmo tinha apenas 15 anos, sendo que ainda hoje trabalham juntos, inclusive para DAMN.. Bem antes de tudo isto, Anthony vivia no sul dos EUA, onde se envolvia frequentemente com gangs da zona. Um dia, decidiu assaltar o KFC local, algo que já tinha feito antes, tendo matado duas pessoas no primeiro incidente. Acontece que, nesse dia, Kenneth Duckworth estava de serviço no restaurante. Ducky, ao aperceber-se do que estava prestes a acontecer, decide falar com Anthony dizendo-lhe que daí em diante lhe ofereceria frango e biscoitos grátis de cada vez que o mesmo lá fosse. Anthony gostou da sua atitude e poupou-lhe a vida.
O que Kendrick revela no final de “DUCKWORTH.”, é que Ducky é, de facto, o seu pai: “whoever thought the greatest rapper would be from coincidence? Because if Anthony killed Ducky, Top Dawg could be servin’ life, while I grew up without a father and die in a gunfight”. Os factos relatados foram confirmados por todas as partes envolvidas. É de valorizar Kendrick por revelar uma história de origem tão interessante quanto esta apenas no seu quarto álbum de estúdio. A faixa termina com um reverse do álbum na sua íntegra, ouvindo-se o primeiro verso da primeira faixa (“so, I was takin’ a walk the other day”). É o fecho de um ciclo perfeito.
Aos 29 anos, Kendrick Lamar é um ícone do hip-hop contemporâneo. DAMN. representa uma mensagem urgente, uma chamada de atenção para a humanidade. O rei do flow fez aquilo que melhor sabe fazer.
DAMN.
Kendrick Lamar
Aftermath / Interscope / Top Dawg Entertainment
2017