Hoje, depois do que certamente foi a campanha mais atribulada no Reino Unido nos últimos tempos, os britânicos são chamados a votar pela 3ª vez em três anos. E o que agora as gentes da Bretanha e Irlanda do Norte parecem estar a descobrir é que uma democracia é um daqueles produtos que, ‘upa upa’, pede constante e exigente manutenção.
‘Ui, mas então há um Donald Trump à solta nas eleições britânicas?’, questionam vocês, incautos surfistas da rede internáutica digital. Não. Quer dizer, há, mas é uma versão rasca e, acredito, um pouco mais competente, que não tomou conta de outro partido, só se estragando assim uma casa – a mesma desde há algum tempo, o UKIP. Falo antes dos eleitoralismos que parecem estar a afetar principalmente uma candidata à ‘premiership’ e o seu partido: Theresa May e os Conservadores, também conhecidos como Tories.
Progressivamente, a política britânica, como a de muitos outros países, tem-se encostado à direita. Primeiro, foi arrastada por Thatcher e a sua ‘maravilhosa’ nova economia. Depois, pelo recente extremismo pós-11 de Setembro, reforçada pela crise de refugiados e pela onda de atentados que se faz sentir desde novembro de 2015. Ou seja, não foi surpresa quando, após o choque do Brexit e a saída de Cameron, tomando conta do partido e do número 10 de Downing Street, Theresa May escolheu, como diz a Economist, virar os Tories para um conservadorismo caseiro, com uma retórica a bater ferro no nacionalismo, tentando recuperar os eleitores que perdeu para o UKIP. Imaginem isto aliado à austeridade que está a ser implementada desde 2010. Upa upa, mas que bela combinaçãozinha!
A combinaçãozinha fica ainda melhor – ou pior – com as declarações de May nesta terça-feira, em que disse, com orgulho e pujança, que estava preparada para rasgar toda e qualquer lei de direitos humanos que se metesse no caminho de nova legislação anti-terrorismo. Está-se a propor deitar ao lixo leis que protegem os nossos direitos como seres humanos só para recuperar o controlo da retórica anti-terrorista e de segurança durante uma campanha. É só a mim que assusta a leviandade com que se põe uma proposta destas em cima da mesa? Eu sei que vivemos dias muito ‘covfefe’ neste mundo aparentemente todo ‘covfefado’ da mioleira, mas isto não pode ser normal, nem aceite como normal.
Vamos lá ver umas coisitas muito pequenitas. Estamos a viver uma onda de ataques terroristas? Sim. Estamos a viver uma era de parvalheira mediática perante qualquer idiota que entre de martelo num qualquer sítio a gritar umas coisas, ajudando só a que haja mais pânico e um maior ambiente de aterrorização das pessoas? Sim. Há quem esteja a tentar perturbar a normalidade da nossa sociedade através de métodos mortíferos perante civis? Sim. Mas, perante isto, a nossa resposta, como já estamos fartos de saber – ou devíamos – não pode ser o típico ‘é torturá-los, é prender esses (inserir raça não-caucasiana aqui) todos, é mandá-los todos para o sítio de onde vieram, quem não deve não teme’, e por aí fora. Não pode, principalmente se queremos manter as nossas liberdades e democracias intactas.
Perante toda esta ameaça, dizer sim ao fascismo e ao fim de liberdades individuais é parvo e demonstrador do nosso nível de aprendizagem com o passado: zero. Principalmente quando dizemos em alta voz que devíamos era bombardear os países do Médio Oriente de onde os terroristas supostamente vêm ou de onde retiram a sua ‘ideologia’ (chamar ideologia ao objetivo de matar o maior número de pessoas possível é francamente perturbante). Ou, para usar o termo da administração Bush, “plantar as sementes da democracia”. Não sabia que as sementes da democracia se lançavam sobre as terras com recurso a caças, helicópteros, misseis guiados e esquadrões de soldados. Modernices.
As nossas liberdades são importantes. A dos outros também. E é preciso perceber que as liberdades dos outros também são as nossas liberdades. Quando se diz que se vai aumentar o período durante o qual alguém pode estar preso sem ser acusado, as nossas liberdades e direitos também sofrem. Quando se coloca um país em estado de emergência durante quase dois anos, nós, que supostamente não somos o alvo, também vamos sofrer ‘upa upa’ com as consequênciazinhas dessa decisão. Quando se decide invadir e bombardear outros países com base em provas falsas de armas de destruição maciça ou qualquer outro instrumento de guerra, nós também vamos sofrer. A curto e a longo prazo.
O nacionalismo – seja da pesada ou uma versão light, sem açúcar e com rebranding – tem consequências para nós. É o princípio do fim das liberdades dos outros e, por arrasto, das nossas. É o princípio do fim das nossas democracias, onde nós ainda temos o poder. O poder de escolha de quem nos representa e decide por nós e que, por isso, responde perante nós, as pessoas, quando comete erros ou entra intencionalmente por caminhos menos legais.
A democracia é uma daquelas crianças exigentes e embirrentas, que requer muita manutenção, muito trabalho e, ‘upa upa’, muita resistênciazinha. Mas é daquelas que vale a pena, a sério. Citando Churchill, “a democracia é a pior forma de governo, tirando todas as outras”.