Sempre que puxo a fita atrás para recordar os meus três anos de ComUM é inevitável pensar no “Entre Linhas” e na aventura pela aldeia da Gemieira. Recordo com carinho os momentos que passei nesta casa, mas aquela viagem às entranhas do Alto Minho marcou-me de forma especial.

Estávamos em dezembro de 2015, quando eu, o Gonçalo Costa e o Tiago Ramalho decidimos debruçar-nos sobre o projeto da REN, que prevê ligar a Galiza ao Norte de Portugal através de uma Linha de Muito Alta Tensão. O tema estava – e ainda está – a causar polémica junto de algumas das populações afetadas pelo traçado, que não querem ver a linha passar por cima das suas casas. Uma dessas povoações é a aldeia da Gemieira, uma pequena freguesia do concelho de Ponte de Lima, que já em 2014 tinha sido notícia por ter boicotado as eleições europeias – as urnas não abriram – em protesto contra o projeto.

Ficámos curiosos, e resolvemos ir até àquele cantinho plantado na margem esquerda do Rio Lima. Eu e o Gonçalo – infelizmente, o Tiago não nos pôde acompanhar nesta viagem – lá embarcámos, com aquele misto de ansiedade e entusiasmo que normalmente guia uma reportagem.

No entanto, qualquer insegurança que pudéssemos ter ficou logo ultrapassada com a disponibilidade que reina na Gemieira. É hábito dizer-se que as gentes do Minho são especialistas na arte de bem receber, mas aquilo que encontrámos naquela aldeia excedeu completamente as nossas expetativas. Não estaria a exagerar se dissesse que levámos um autêntico banho de hospitalidade e genuinidade. Mas pronto, mais do que continuar nesta onda de elogios, que por agora pode parecer injustificada aos olhos do leitor, creio que o melhor a fazer é contar uma pequena estória demonstrativa do espírito de acolhimento que por lá se respira.

Para tal, é necessário recuar até à nossa madrugadora chegada à aldeia, ainda os primeiros raios de sol começavam a dar cor aos campos cobertos de gelo e a brisa matinal colocava em sentido quem se atrevesse a andar pela rua. Nada que nos impedisse de iniciar a exploração dos cantos e recantos da localidade. Não foi, por isso, difícil dar de caras com uma curiosa mercearia centenária, localizada bem no coração daquela freguesia de Ponte de Lima. À porta, estava o senhor José, dono do estabelecimento. Ficou surpreendido com o arsenal de câmaras, tripés, microfones e gravadores que trazíamos, mas não hesitou em meter conversa connosco e em convidar-nos a entrar para um cafezinho.

Foto: Pedro Gonçalo Costa

Foto: Pedro Gonçalo Costa

Começou por falar-nos orgulhosamente do filho que também frequentara a Universidade do Minho. De seguida, vieram as preocupações com a possível colocação de postes de Muito Alta Tensão na aldeia. Percebemos que o tema dizia muito ao senhor José, tal a vivacidade e a abertura com que falava sobre o assunto. Mais à vontade, perguntámos-lhe se podíamos gravar algumas declarações para a reportagem. Aí, o dono da mercearia começou a mostrar algumas reservas, acabando por rejeitar o nosso primeiro pedido de entrevista.

Abandonámos o estabelecimento no fim do cafezinho, mas ficámos com a impressão de que ainda poderíamos convencer o senhor José a ser entrevistado por nós. Não nos enganámos. À segunda tentativa, já mais perto da hora de almoço, o dono da mercearia foi sensível aos nossos argumentos e lá aceitou que gravássemos a sua visão sobre o assunto.

Voltámos a estar mais um bom bocado à conversa, até que apareceu a esposa do senhor José – peço desde já desculpa por não me recordar do seu nome. Ela entrou logo na conversa, mostrando-se bastante interessada no tema. Daí até começar a insistir para que fôssemos a sua casa foi um ‘tirinho’. Queria mostrar-nos uma parte do terreno que poderá vir a ser afetada pela Linha de Muito Alta Tensão.

Aceitámos imediatamente o convite, e dirigimo-nos à carrinha do casal, que se encontrava mesmo ali ao lado da mercearia. No entanto, acabou por surgir um problema: a viatura só tinha três lugares para quatro presumíveis ocupantes. Motivo suficiente para abortar a viagem? Nem pensar. A esposa do senhor José não esteve cá com meias medidas e mandou logo um de nós para a mala. Resultado: o pobre do Gonçalo lá teve de viajar nos “calabouços” da carrinha. Já não me lembro dos motivos que levaram àquela decisão, mas ele assumiu o papel sem rodeios, sacrificando-se como um verdadeiro jogador de equipa. Eu acabei por ter mais sorte, e fui à frente a fazer companhia ao casal.

Apesar da viagem rocambolesca, o Gonçalo chegou à habitação são e salvo, tal como o material que lhe fez companhia durante o percurso. Fomos então conhecer o terreno, e registámos as inquietações do casal quanto aos efeitos da possível passagem da Linha de Muito Alta Tensão. No fim, ainda insistiram connosco para que ficássemos a almoçar. Custou-nos bastante, mas tivemos de resistir a este último pedido, pois ainda tínhamos um longo dia de trabalho pela frente.

Despedimo-nos da esposa do senhor José e fizemo-nos à estrada com o dono da mercearia – desta vez, o bilhete do Gonçalo já contemplava um lugar na parte da frente da carrinha. De volta ao centro da aldeia, chegou a hora de também dizermos adeus ao senhor José, entre agradecimentos e desejos de “boa sorte”. Partimos então para o resto de uma longa e recompensadora aventura pela Gemieira, cheia de episódios tão calorosos como este que acabei de descrever.

Podia falar de cada um deles para ilustrar a forma especial como aquele povo minhoto tão bem acolhe quem se atreve a explorar os encantos da terra. É impossível esquecer-me da doce frontalidade da dona Glória, que não se importou de interromper o trabalho na “lavoura” para nos dar conta das suas preocupações. Da entrevista à dona Ana, que derivou numa longa conversa sobre as questões do dia-a-dia, com direito a umas laranjas e umas nozes do quintal. Ou até mesmo da intrigante bebida do senhor António, que serviu de aperitivo para um diálogo no murinho de casa. Todos eles seriam exemplos perfeitos de como o ofício de contar histórias ainda é o mais belo que existe. Não fosse o jornalismo uma arte capaz de viver até na mala de uma carrinha.