Naquele dia de Setembro, em 2008, fiz o percurso de carro entre Penafiel (a minha cidade natal) e Braga na companhia de uma advogada que tinha acabado de conhecer. Ao contrário do habitual, não fui directamente para a universidade. Fui com ela para o Tribunal Judicial de Braga. Tinha sido intimado a comparecer em audiência preliminar, acusado pelo director do departamento desportivo dos Serviços de Acção Social da Universidade do Minho (SASUM), Fernando Parente. Acusado por atentado ao seu bom nome.
A carta do tribunal chegara semanas antes, estava eu em Lisboa a meio do estágio curricular. Agitada, a minha mãe ligou-me para contar a novidade. Pedi-lhe que abrisse a carta e o que lá vinha deixou-me boquiaberto: o que levaria Fernando Parente a processar-me? Onde teria o ComUM sequer remotamente atentado contra o seu bom nome?
Devo ter rebobinado mentalmente todo o filme daqueles últimos meses à frente do ComUM. Entre Outubro (data em que lançámos o novo site), Fevereiro (primeira edição do ComUM impresso) e Maio (nona e última edição), que textos por nós publicados poderiam ter provocado a ira do ainda hoje líder dos serviços desportivos da universidade?
A resposta é que não fizemos nada errado. E que, apesar disso, eu acabei a pedir-lhe desculpa, oficialmente, em tribunal.
23 de Abril de 2008. A sétima edição do ComUM impresso diz em manchete que o jornal mensal UMdicas, detido pelos SASUM e com Fernando Parente como director, não tem nova edição há três meses. O motivo? Provavelmente uma notícia do jornal que rapidamente se tornou polémica. O visado, o então Presidente do Instituto de Ciências Sociais, Moisés Martins, foi a uma reunião do Senado da UM mostrar-se ofendido por o jornal lhe ter atribuído citações falsas e por ter procurado ridicularizá-lo no artigo através de sucessivas adjectivações.
Não precisámos de esperar muito. Na verdade, esperámos apenas um dia. A nova edição do UMdicas chegou, por pura coincidência, no dia seguinte ao da edição do ComUM: 24 de Abril. Digo pura coincidência sem ironia, não alimento teorias da conspiração: o jornal dificilmente teria uma edição feita, pronta a imprimir e a distribuir, que só a força da manchete do ComUM desbloquearia. Não nos creio assim tão poderosos… Seja como for, a nova edição saiu.
Nela, em Direito de Resposta, Moisés Martins disse serem falsas todas as citações que o UMdicas lhe atribuiu. Ao lado do Direito de Resposta, uma Nota da Direcção assinada por Fernando Parente não contraria Moisés Martins: limita-se a dizer que “a notícia não pretendeu de forma alguma ofender” o visado, “nem qualquer pessoa relacionada”, e que, “na eventualidade de alguém se ter sentido ofendido, expresso as sinceras desculpas”. As sinceras desculpas de quem? E na eventualidade de alguém se sentir ofendido, quando na caixa ao lado Moisés Martins demonstra claramente que se sentiu ofendido?
A 7 de Maio, uma nova edição do ComUM anuncia o regresso do UMdicas. “O ComUM sabe que uma conversa entre Moisés Martins e os responsáveis pelo UMdicas permitiu sanar o conflito”, diz-se no artigo. Mais à frente, cita-se parte do editorial desta nova edição do UMdicas, em que Fernando Parente promete um estatuto editorial para o jornal para a edição seguinte.
O assunto UMdicas morreu aqui, não foi chamado a qualquer outra notícia do ComUM. Como se vê, as notícias do ComUM sobre o UMdicas foram equilibradas e absolutamente inofensivas. A propósito, e como enquadramento, importa referir que os nove ComUM impressos também deram cobertura a denúncias relacionadas com a praxe, a AAUM, a Reitoria e a Escola de Direito, entre outras instituições importantes da UM.
Falta dizer que o UMdicas foi alvo do InComUM, a secção satírica do ComUM.
A primeira notícia do InComUM sobre o UMdicas saiu também na 7.ª edição. O excelso jornalista Natércio Trauliteiro avançava aí a verdadeira razão para o aparente fecho do jornal dos SASUM: a ASAE “encerrou compulsivamente o jornal devido à quantidade de erros ortográficos em que os Editoriais repetidamente incorriam”.
Noutra notícia da mesma edição, o InComUM fazia o pleno junto dos jornais concorrentes escrevendo que “o jornal Académico, semanário de inegável qualidade publicado na UM, manifestou-se contra o novo Acordo Ortográfico. […] ‘Já andamos a pedir ao Governo que nos conceda um Acordo Ortográfico especial há anos, porque os nossos redactores têm dificuldades em entender o que está em vigor’. Dificuldades? ‘Sim, há muitas regras estúpidas como ter de acentuar os verbos no passado, ou até escrever a 3.ª pessoa do singular sem ‘s’. É estúpido’. Entre o rol de queixas estão ainda questões gramaticais. Balbina Trombose acha ‘altamente ultrajante’ não poder separar o sujeito do predicado por vírgula […]. Os leitores não devem, assim, surpreender-se ‘quando virem títulos com citações não creditadas’, nem ainda com ‘notícias que imitam composições da Primária’.”
Na edição n.º 8, o InComUM assinalou a paz alcançada entre o dirigente do ICS e o dos SASUM com uma notícia intitulada: “Fernando Parente convida Moisés Martins ‘para um pezinho de dança’”. Num qualquer evento no Dia Mundial da Dança, Parente teria dançado com o “bailarino exímio” Moisés Martins, “isto apesar de [ele] me ter pisado algumas vezes”. Já Moisés Martins teria dito ao InComUM: “nota-se que [Fernando Parente] andou a praticar com Carlos Silva”.
A 9.ª e última edição do InComUM não esqueceu Fernando Parente, “reconhecido fã da rubrica humorística do ComUM”, que teria sido “apanhado completamente ébrio” no Enterro da Gata, tentando desse modo “esquecer que vem aí o último InComUM”. Parente teria garantido à redacção do InComUM que ia “sentir falta das capas que dedicaram ao UMdicas” e que “o UMdicas e o InComUM são jornais irmãos”.
Foram estes textos do InComUM que fizeram Fernando Parente sentir o seu bom nome maculado. A ponto de me ter convidado para um pezinho de dança no Tribunal de Braga.
Naquele dia de Setembro, apresentei-me às requeridas 9:30 com a advogada, escolhida com o critério único de ser a especialista penal com os honorários mais baixos de Penafiel. Os mais baixos, pelo menos, de entre os advogados contactados. Naquela hora completa de viagem Penafiel – Braga, ela foi-me perguntando o que estava em causa no processo e que desfecho eu previa. Disse-lhe que nada daquilo tinha fundamento, que os textos que poderiam ter feito com que Fernando Parente sentisse o seu bom nome atacado pertenciam, na verdade, a uma secção satírica – não correspondiam portanto à verdade e precisamente por esse motivo e com essa liberdade é que tinham sido publicados. Disse-lhe ainda que o juiz certamente perceberia o mal-entendido, diria algo como tenham juízo, não me façam perder tempo e mandava-nos para casa. Com a agravante, que eu já conhecia à data, de que não indo nós a julgamento cada qual pagaria as suas custas judiciais. Eu teria a vitória moral, é certo, mas a carteira ficava mais leve.
A resposta dela deixou-me estarrecido: era provável, repito, era provável, disse a advogada, que o juiz, mesmo vendo parvoíce no caso, sugerisse que eu pedisse desculpa a Fernando Parente como forma de o assunto ficar resolvido. Como??, disse eu. Não estou automaticamente ilibado pelo facto, simples e objectivo, de as três notícias jocosas pertencerem à secção satírica do ComUM? Respondeu-me ela: o juiz pode assumir uma postura arbitral e deixar ao critério de ambos se avançam ou não com o processo para tribunal. E o mais provável é que Fernando Parente queira avançar, sobretudo se te estiver a acusar enquanto funcionário e com o respaldo financeiro dos SASUM.
Estupefacto com a possibilidade, entrei na sala de audiências, acompanhado da minha advogada e logo seguido pelo próprio Parente e respectivo advogado. A minha pior expectativa concretizou-se: depois de ouvir ambas as versões, o juiz sugeriu que o assunto ficasse encerrado ali se pudesse ser registado em acta que eu, director do ComUM à data dos factos, havia pedido desculpa por o jornal ter lesado o bom nome de Fernando Parente e havia garantido que nenhuma outra peça com semelhantes ofensas seria publicada pelo jornal. E que Parente tinha aceitado (!).
Fazendo contas à magra conta bancária, somei aos mais de 600 euros que gastaria por aquelas poucas horas outros 600, e outros ainda, e talvez outros para lá desses, que poderia vir a ter de gastar com a advogada e com custas judiciais se decidisse avançar para a primeira instância judicial. Mais tarde ou mais cedo, provavelmente tarde, presumi, teria a vitória neste caso e seria ressarcido. O problema é que não tinha dinheiro para sequer avançar. E esse dinheiro ser-me-ia exigido a cada passo do processo, impreterivelmente. A contragosto, fiz o breve pedido de desculpas que o bom nome profundamente ferido exigia. E, quando saí, ia lamentando uma justiça que condena à partida quem não tem a mais centenas, milhares mesmo, de euros para pagar a pronto, antes mesmo de começar a fazer valer os seus direitos.
O importante, o importante mesmo, é que também saí sentindo-me vencedor. Sentindo-nos, ComUM, vencedores. Moralmente. Por o nosso jornal ter sempre adoptado “os preceitos éticos e deontológicos observados no campo jornalístico, pautando a sua conduta pelo interesse público, pelo direito à informação, de informar e ser informado, pelo direito à liberdade de expressão e de opinião, pelo direito à reserva da vida privada e pelo cumprimento dos deveres da responsabilidade social” (alínea 7 do nosso Estatuto Editorial). Por termos apostado “numa informação diversificada e de qualidade”, promovendo assim “uma opinião pública bem formada e informada, aberta, interessada e participativa” (alínea 6). Por, em suma, não termos confundido “a natureza não profissional [do ComUM] com falta de profissionalismo” (alínea 5). Nós, mais de 40 alunos e alunas de Ciências da Comunicação, que sozinhos montámos um jornal online e impresso com informação de qualidade e com a necessária publicidade que, angariada semana a semana, foi garantindo a sobrevivência do projecto.
A todos vós, os da fotografia e os que não puderam entrar nela, o meu muito obrigado. Porque os meses que em 2008 tivemos em ComUM são inesquecíveis. O resto – o resto são pinners e uma história para contar.
“Estórias da História” é o espaço para contar episódios que ficaram na memória de quem fez parte do ComUM. Palavra a contadores de estórias que construíram a história deste jornal, numa rubrica que acompanhará o mês de Agosto.
Agosto 7, 2017
Destes tempos (já 2008!…) guardo também algumas belas memórias. E não só na minha cabeça. Tenho colado no tampo da minha secretária, ainda hoje, um papelinho com uma citação do Estatuto Editorial do ComUM que especialmente aprecio e que me farto de usar em conferências e congressos, a propósito da identidade profissional dos jornalistas e das questões complexas do “profissionalismo”. Reza assim o papelinho (como o Rui Rocha recorda aqui no seu texto): “O ComUM não confunde a sua natureza não profissional com falta de profissionalismo”. Tal e qual. Em homenagem a essa bela equipa, aqui fica o meu testemunho — e a prova, em forma de fotografia… Só transcrevi, porque o papelinho original, de tanto usado, já mal se lê. Mas lá está, em cima da minha secretária. E lá ficará sempre. Grande abraço, Rui! Grande abraço, malta do ComUM!
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Agosto 8, 2017
Caro Joaquim, fico comovido e com poucas palavras com a sua generosidade para comigo e para com o ComUM que partilhámos durante aqueles meses de 2008. Digo partilhámos porque tive – teve a equipa do ComUM – o privilégio de publicar textos magistrais seus na primeira e na última edição do ComUM impresso. (Deixo o seu último texto abaixo, em imagem, porque acredito que poderá tocar um ou outro aspirante a jornalista que hoje dedique muito de si ao ComUM, como nós fizemos.) Foi um privilégio tê-lo cronista, como foi com gosto muito particular que fui ouvindo, aqui e ali, as suas palavras de apreço pelo nosso projecto. Sabe bem a quem dá tanto por algo saber que as pessoas que tem como referência apreciam o resultado desse trabalho. Também fico com essa memória boa, depois destes nove anos. Um grande abraço para si e outro para os tantos professores que estiveram connosco, com palavras e acções bonitas. Bem-hajam!
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Agosto 9, 2017
Muito obrigado mais uma vez, meu caro Rui. Foi um enorme gosto ter trabalhado convosco naquele vosso — sim, todo vosso — projecto, vê-lo nascer, crescer, andar, procurar… Lembro-me da tua maluqueira, a aprender um programa de paginação do dia para a noite (o Quark Xpress, não foi?) , de modo a garantirem a auto-suficiência na produção do jornal. E lembro-me bem das páginas satíricas (“Inimigo Público” avant la lettre…), escritas a branco sobre fundo negro, para não haver hipóteses de confusão. Claro que me lembro também desse infeliz episódio do Parente e do tribunal (sim, estive lá convosco nessa manhã, era tua testemunha de defesa, afinal não cheguei a ser chamado). Foi tudo muito intenso, como convém. Por isso continua tão presente cá dentro… Obrigado, grande abraço! (E parabéns, parece que fazes anos hoje… ;-) )
Agosto 10, 2017
Foram meses incríveis, a tantos níveis: “aprender” o InDesign num tirinho; ficar sem monitor no portátil e o prof. Luís Santos emprestar-me um de lá de casa; ver toda a gente a remar para o mesmo lado na equipa do ComUM; e ter o seu apoio no processo em tribunal!
Obrigado e um grande abraço,
Rui
Agosto 7, 2017
Destes tempos (já 2008!…) guardo também algumas belas memórias. E não só na minha cabeça. Tenho colado no tampo da minha secretária, ainda hoje, um papelinho com uma citação do Estatuto Editorial do ComUM que especialmente aprecio e que me farto de usar em conferências e congressos, a propósito da identidade profissional dos jornalistas e das questões complexas do “profissionalismo”. Reza assim o papelinho (como o Rui Rocha recorda aqui no seu texto): “O ComUM não confunde a sua natureza não profissional com falta de profissionalismo”. Tal e qual. Em homenagem a essa bela equipa, aqui fica o meu testemunho — e a prova, em forma de fotografia… Só transcrevi, porque o papelinho original, de tanto usado, já mal se lê. Mas lá está, em cima da minha secretária. E lá ficará sempre. Grande abraço, Rui! Grande abraço, malta do ComUM!
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Agosto 8, 2017
Caro Joaquim, fico comovido e com poucas palavras com a sua generosidade para comigo e para com o ComUM que partilhámos durante aqueles meses de 2008. Digo partilhámos porque tive – teve a equipa do ComUM – o privilégio de publicar textos magistrais seus na primeira e na última edição do ComUM impresso. (Deixo o seu último texto abaixo, em imagem, porque acredito que poderá tocar um ou outro aspirante a jornalista que hoje dedique muito de si ao ComUM, como nós fizemos.) Foi um privilégio tê-lo cronista, como foi com gosto muito particular que fui ouvindo, aqui e ali, as suas palavras de apreço pelo nosso projecto. Sabe bem a quem dá tanto por algo saber que as pessoas que tem como referência apreciam o resultado desse trabalho. Também fico com essa memória boa, depois destes nove anos. Um grande abraço para si e outro para os tantos professores que estiveram connosco, com palavras e acções bonitas. Bem-hajam!
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Agosto 9, 2017
Muito obrigado mais uma vez, meu caro Rui. Foi um enorme gosto ter trabalhado convosco naquele vosso — sim, todo vosso — projecto, vê-lo nascer, crescer, andar, procurar… Lembro-me da tua maluqueira, a aprender um programa de paginação do dia para a noite (o Quark Xpress, não foi?) , de modo a garantirem a auto-suficiência na produção do jornal. E lembro-me bem das páginas satíricas (“Inimigo Público” avant la lettre…), escritas a branco sobre fundo negro, para não haver hipóteses de confusão. Claro que me lembro também desse infeliz episódio do Parente e do tribunal (sim, estive lá convosco nessa manhã, era tua testemunha de defesa, afinal não cheguei a ser chamado). Foi tudo muito intenso, como convém. Por isso continua tão presente cá dentro… Obrigado, grande abraço! (E parabéns, parece que fazes anos hoje… ;-) )
Agosto 10, 2017
Foram meses incríveis, a tantos níveis: “aprender” o InDesign num tirinho; ficar sem monitor no portátil e o prof. Luís Santos emprestar-me um de lá de casa; ver toda a gente a remar para o mesmo lado na equipa do ComUM; e ter o seu apoio no processo em tribunal!
Obrigado e um grande abraço,
Rui