Fernando Reis, presidente da Câmara de Barcelos (CMB) entre 1989 e 2009, começa a ser julgado dia seis de fevereiro de 2018 pelo crime de prevaricação na concessão das redes de água e saneamento do concelho. O município viu a condenação do pagamento de 172 milhões de euros de indemnização à Águas de Barcelos (AdB) confirmada no início deste ano pelo Tribunal Constitucional.
Segundo a edição de hoje do Jornal de Barcelos, são acusados do mesmo crime Perfeita Fernandes, ex-diretora do Departamento de Ambiente da CMB, António Lobo Guerra e José Miguel Maia, administrador e diretor, respetivamente, da Administração e Gestão de Sistemas de Salubridade (AGS), empresa da Somague. O despacho de acusação acusa os quatro arguidos de terem agido em benefício da AGS em prejuízo dos interesses da Câmara de Barcelos e de outros concorrentes à concessão. A acusação de corrupção por parte do ex-presidente acabou por cair, não tendo sido detetados quaisquer indícios no decurso da investigação.
A acusação foi deduzida em março de 2017 pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), partindo de uma denúncia da Inspeção Geral de Administração Local (IGAL).
O DCIAP refere ainda que foi “notória” a intenção dos arguidos de “avançar com o contrato de concessão, ‘contra tudo e contra todos’, sem preparação ou preocupação com a sustentabilidade e viabilidade económica do mesmo, do qual só saiu beneficiada a concessionária”. Os arguidos António Lobo Guerra e José Miguel Maia terão também colaborado na preparação do concurso de adjudicação da concessão que foi depois atribuída à empresa formada pela AGS e pelo grupo Alexandre Barbosa Borges (ABB): a Águas de Barcelos.
A Câmara de Barcelos é assistente no processo, tendo como objetivo a indemnização pelos prejuízos causados pela conduta dos arguidos. Miguel Costa Gomes, presidente socialista do executivo barcelense, declarou à comunicação social que a indemnização à CMB deveria igualar o valor que foi condenada a pagar à empresa.
Ainda segundo o Jornal de Barcelos, o julgamento irá prolongar-se até ao final do mês de abril, tendo já seis sessões marcadas. Estão, neste momento, arroladas 25 testemunhas: 19 pelo Ministério Público e seis pela Câmara Municipal de Barcelos.
A concessão atribuída com “pecado capital”
O caso remonta a setembro de 2004, data em que a concessão das redes de água e saneamento barcelenses foi adjudicada à empresa Águas de Barcelos – pertencente ao universo Somague – por um período de 30 anos. Apesar de cumprir os preceitos do Tribunal de Contas e da entidade reguladora das águas e saneamentos, as previsões de aumento da população e de consumo de água nunca foram concretizadas – sendo este o “pecado capital” do negócio, segundo Miguel Costa Gomes.
Estas previsões foram baseadas num “caso base” irrealista, apontando um número errado de habitantes do concelho e prevendo um crescimento anual da população de 1% – depois de 2007 a população barcelense seguiu a tendência nacional e começou a diminuir, fruto da emigração. A estimativa de consumo médio por pessoa em 2001 era a de 114 litros, prevendo um crescimento de três litros por dia por habitante até 2018, algo que também se provou completamente desviado da realidade – até 2011 o consumo per capita estava 50,1% abaixo das previsões do “caso base”.
A definição desta peça contratual terá sido totalmente atribuída ao consórcio, abdicando a autarquia de formular uma das partes mais cruciais do contrato. O Tribunal de Contas declara que “não se fez nenhum estudo que suportasse” os dados de aumento de consumo.
Foi este desvio das previsões que levou a empresa a requerer, em 2009, a constituição do tribunal arbitral para repor o equilíbrio económico-financeiro, resultando na condenação do pagamento de uma indemnização de 172 milhões de euros em tranches anuais, até 2035. O valor representa mais de três anos de receitas da autarquia barcelense.
Esta condenação, ratificada em todas as instâncias judiciais, ainda não foi contudo aplicada, por acordo entre o município e as duas empresas que formam a Águas de Barcelos, que têm vindo a negociar outras formas de solucionar o problema.
A “especificidade” que foi ignorada
Para Miguel Costa Gomes, “a especificidade do município” não foi tida em conta, principalmente a sua faceta rural: os habitantes das freguesias torceram o nariz à ideia de que teriam de pagar pela água que consumiam, já que desde há muito abasteciam as suas necessidades através de furos à porta de casa. E apesar da ideia de dispor de uma rede de saneamento ser atrativa, os custos de instalação dos ramais até casa – cerca de 1500 euros – dissuadiu muitos de aderir. Perante isto, a câmara interviu passando a financiar pela metade ou totalmente os custos das ligações.
Ainda assim, apesar da rede aumentar, o consumo permanecia estagnado. Grande parte da população usava o sistema público para as suas descargas de águas residuais e continuava a usar águas dos poços para cozinhar e tomar banho. A concessionária via-se a braços com pesados encargos a gerir os resíduos sem poder faturar pela venda de água. Nem a introdução de uma cláusula de penalização do não consumo alterou o cenário .
O sucessivo desvio das previsões – em 2009, cada barcelense consumia 75 litros de água por dia, quando o “caso base” apontava para 138 litros -, fruto do aumento do número de clientes que pouco ou nada usavam a água da rede pública, leva a que, ainda em 2009 – ano de eleições -, a Águas de Barcelos reclame um aumento imediato do preço da água em 38% e peça a aplicação da cláusula de reequilíbrio financeiro.
O caso marcou, pela terceira vez consecutiva, a campanha eleitoral no município, nomeadamente quando a proposta do presidente socialista Miguel Costa Gomes de comprar 49% do capital social da AdB – que implicaria o pagamento, pela CMB, de 44,5 milhões de euros à concessionária por compensação financeira – foi chumbada numa reunião do executivo camarário.
A principal oposição à proposta surgiu em Domingos Pereira, que protagonizou a divisão da concelhia barcelense do Partido Socialista e se candidatou como independente à presidência da câmara. “Ficamos estupefactos com um memorando que o presidente da câmara apresentou em que defende que a aquisição de 49% das Águas de Barcelos por 59 milhões de euros é o melhor acordo de todos, enquanto o que estava em cima da mesa eram outros dois acordos com os privados”, disse na altura.