No primeiro “Blade Runner” olhavam-se as estrelas. Enregelado sob um impermeável numa noite chuvosa, o protagonista Rick Deckard podia perscrutar além da luz ofuscante do néon para a promessa de uma vida melhor nas colónias espaciais, longe de uma Terra poluída onde todos os avanços tecnológicos coabitam com as condições humanas de miséria, desigualdade e desalento. No caminho inverso encontrávamos Roy Batty e o seu bando de replicantes, humanos sintéticos criados para trabalhar como escravos, que escaparam dos seus mestres para experienciar uma vida repleta de momentos inesquecíveis. Chegados à Terra, os androides intrépidos procuravam o seu Criador para corrigir uma anomalia nos seus organismos: um limite de apenas quatro anos antes de morrerem.

Em “Blade Runner 2049” as estrelas deixaram de ser uma ambição. Apesar da mestria do realizador Denis Villeneuve e dos cenários resplandecentes que podemos observar pelas lentes de Roger Deakins, a alma do filme original cedo dá lugar a um mundo mecânico com personagens desprovidas de um propósito a que possam aspirar. Aqui interpretado por Ryan Gosling, o protagonista é K, um blade runner que executa replicantes fugidos com uma prontidão inumana; afinal, ele mesmo não é um humano, mas um sintético. Trinta anos após os eventos do primeiro filme, os replicantes já não sofrem com o prospeto de uma existência curta, mas a sua sina de uma vida desprovida de significado pessoal perdura.

blade-runner-2049-image

Após concluir a sua tarefa, K regressa ao quartel da polícia de Los Angeles, onde realiza um teste de reações perante uma câmara num cubículo vazio antes de um debriefing com a sua superiora. Chegado ao fim do dia, o agente regressa a um pequeno apartamento, onde a sua única companhia é uma inteligência artificial com quem mantém uma relação amorosa; contudo, o amor e o afeto são invisíveis por entre um aparente hábito, uma rotina de faz-de-conta que nunca cresce ou evolui apesar das peripécias que o casal atravessa ao longo do enredo.

Do primeiro filme regressa o estilo visual de uma Los Angeles soturna, em que as pessoas caminham cabisbaixas por entre ruas povoadas de comerciantes contrastadas com anúncios publicitários a ocupar a fachada de arranha-céus imponentes. Regressam também os carros voadores, também ainda um luxo para poucos. Enquanto Deckard explorava estas lojas quase improvisadas e o interior vazio dos edifícios, K sai de Los Angeles e viaja por uma Califórnia poeirenta e desértica onde os ecossistemas pereceram.

Num filme que se estende por quase três horas, a opressão emocional que a Wallace Corporation impõe na civilização é fruto de uma ambição pessoal desmedida do seu fundador, um sonho que consiste em erguer e governar uma civilização magnânima. Para reavivar a memória de antigas civilizações humanas, Wallace pretende manufaturar um número incontável de replicantes que possam servir como escravos na construção de um novo universo. Porém, o poder de uma personagem tão fulcral encontra pouco gravitas em Jared Leto, que não consegue implementar uma seriedade e uma presença que seriam essenciais nesta situação; por vezes depreende-se até a sensação de que tal ambição é oca e desprovida de motivos mais profundos.

blade-runner-2049-teaser_1482210501030

Em contrapartida, no papel de K Ryan Gosling demonstra uma tormenta crescente com o decorrer da investigação que o fez duvidar da sua identidade e das suas responsabilidades; inicialmente como que um ser mecânico com uma rotina desprovida de significado, o personagem atravessa um processo de autodescoberta que no fim sugere um novo papel, um novo propósito e uma nova perspetiva de si mesmo. Destaca-se também a prestação de Sylvia Hoeks enquanto Luv, uma replicante cuja determinação pessoal se distingue num contexto em que as emoções raramente são manifestadas. Por fim, também é relevante o regresso bem conseguido de Deckard, um velho conhecido representado pelo carismático Harrison Ford.

A aventura de K nunca cessa, com novas descobertas a espreitar pelo canto de cada cena sem serem depois desenvolvidas a fundo ou exploradas. Neste filme é exigido ao espetador que compreenda todos os conceitos basilares do universo em que decorre a intriga, sob o risco de não conseguir acompanhar a história. Ao contrário do enredo simples e objetivo do primeiro “Blade Runner”, em que quaisquer considerações sobre a dimensionalidade das personagens ou do universo do filme eram deixadas à ponderação de quem o via, a sequela de Villeneuve parece mais focada em adicionar novas páginas a um glossário. Infelizmente isto afeta o desenvolvimento da narrativa, em que o progresso é por vezes subentendido e alguns arcos de história não foram concluídos.

“Blade Runner 2049” distancia-se do seu antecessor com um resultado agridoce. Se por um lado Villeneuve conseguiu reproduzir uma estética três décadas depois com uma nova história e novas personagens, por outro lado desintegra o caráter distinto do primeiro filme para possivelmente introduzir mais capítulos à intriga; ao transformar o imaginário de sintéticos alienados numa sociedade única e singular em mais uma possível série de ficção científica, este universo corre o risco de cair numa espiral convoluta de que nunca se conseguirá libertar. Para uns, temos um bom filme que mitigue o desejo por um herói acompanhado da melancolia; para outros, haverá sempre o conflito por mais vida, dissolvido como lágrimas na chuva.