É verdade que o cinema português beneficia de um enorme prestígio fora do território nacional. Os sucessos de Tabu e da trilogia Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, das curtas de João Salaviza, Gabriel Abrantes e Carlos Conceição, e agora da obra dos sete ofícios A Fábrica de Nada, de Pedro Pinho, são prova disso.
No entanto, tal não se reflete cá dentro. Porquê? Há muitas razões que talvez justifiquem esta indiferença face ao cinema português.
Existe uma falta de empatia e um negativismo generalizado da parte dos portugueses em relação aos filmes produzidos no país. Nacionalmente, o cinema português é percecionado como sendo demasiado informativo, literário, politico, e com pouca resposta emocional, ou seja, explora o oposto do que a população procura quando quer ir ao cinema. Há também um grande problema quanto à acessibilidade aos filmes portugueses: são muitas as obras que, depois das presenças nos festivais nacionais e internacionais, e uma breve exibição nas salas de cinema, injustamente feita só nas grandes metrópoles do país (Porto, Coimbra e Lisboa), desaparecem completamente do mercado. A crise do euro e os escândalos quanto ao apoio do Estado a esta arte também não ajudam muito na melhoria do panorama. Até agora, que vivemos num período de crescimento económico razoável, continua a ser difícil para quem decide fazer filmes em Portugal.
No entanto, apesar de o panorama cinematográfico ser reduzido, há muito que o cinema português se tornou numa referência no mercado internacional. Aqui apresento uma pequena lista, pela ordem das datas de estreia, de filmes que ajudaram a moldar naquilo que o cinema português se tornou: a alma do povo português.
ANIKI BOBÓ (1942), de Manoel de Oliveira
Aniki Bobó foi a primeira longa-metragem do mestre Manoel de Oliveira, o cineasta com a carreira mais longa do mundo. Pintando a cidade do Porto a preto e branco, o filme acompanha um grupo de crianças, as suas aventuras, paixões e anseios. A longa foi praticamente ignorada na época e só conseguiu alcançar o merecido reconhecimento posteriormente, pois pensava-se, erradamente, que, sendo um filme com crianças, seria para um público composto por crianças. Ainda que de alcance intemporal, não nos podemos esquecer que Aniki Bobó foi rodado e estreou em plena II Grande Guerra. Esta obra desfruta hoje de uma aura mítica: é considerada por muitos críticos como percursora da estética e temática do cinema neorrealista europeu.
OS VERDES ANOS (1963), de Paulo Rocha
Os Verdes Anos é uma estreia esperançosa e ingénua que assinalou a chegada das vanguardas europeias a Portugal. Conta o romance trágico entre Júlio, um jovem que vem do campo para a capital para aprender a ser sapateiro, e Ilsa, uma mulher-a-dias que trabalha num edifício das redondezas. Juntos vagueiam por Lisboa e revelam-se a pouco e pouco um ao outro. Mas o seu amor encontra obstáculos inultrapassáveis. É um marco do Novo Cinema Português, que se debruça sobre e rutura com o Portugal fechado e conformista e Lisboa e a sua crescente urbanização. São inúmeros os exemplos de obras posteriores que citam elementos do filme de Paulo Rocha, nomeadamente a obra que falarei de seguida – O Sangue.
O SANGUE (1989), de Pedro Costa
Na primeira longa-metragem de Pedro Costa, estamos perante um dos melhores exemplos do filme a preto e branco, numa altura em que esta estética noir fora abandonada pela maioria dos cinematógrafos. Aclamado pela crítica, mas não pelo público, O Sangue segue a história de dois irmãos, numa aldeia, pelo Natal, que estão na eminência de sofrerem uma separação, quando as autoridades têm conhecimento da morte do seu pai. É um marco do Novo Cinema Português pela genialidade da sua execução, com uma narrativa pouco óbvia e interpretações brilhantes de Pedro Hestnes e Inês de Medeiros.
NON OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR (1990), de Manoel de Oliveira
Non ou a Vã Glória de Mandar marca o início da década de 90 no cinema português, e Manoel de Oliveira, já com mais de 80 anos de idade, começa a fase mais intensa da sua carreira, onde chega a produzir um filme por ano. A história passa-se em 1974, onde um grupo de soldados portugueses faz uma patrulha e interroga-se sobre o porquê de combaterem no mato africano. O Alferes Cabrita narra então aos soldados a epopeia de Portugal, construída em torno de grandes fracassos. As encenações das batalhas são simples e pobres, muito ao contrário do que vemos nas grandes produções de Hollywood: a sua presença física no espaço é quase banal. Mas a guerra é assim: feita de homens, fracos e/ou fortes, e incertos da sua missão, que carregam armas, e outros aparatos, e que sentem o medo e a saudade – duas variáveis que determinam a vitória ou a derrota. Non ou a Vã Glória de Mandar, é considerada a mais ambiciosa produção de sempre do cinema nacional, além de ser o primeiro filme português a lidar diretamente com a Guerra Colonial.
OS MUTANTES (1998), de Teresa Villaverde
Teresa Villaverde trouxe um filme com uma aura crua e cruel, sobre Andreia, Pedro e Ricardo, três jovens que não se adaptam à corda bamba que é a realidade lisboeta, onde nos extremos se situam os centros de reinserção social, ou então o regresso às famílias disfuncionais.Os Mutantes é realismo puro e duro, raro no cinema português. As personagens só podem contar connosco, que, apenas como espectadores, somos obrigados a olhar as personagens nos olhos e sentir a sua dor e desespero. Teresa Villaverde foi a tão ansiada lufada de ar fresco que o cinema português precisava.
A CARA QUE MERECES (2004), de Miguel Gomes
Mais uma estreia nas longas-metragens, e desta vez de um dos importantes nomes do novo cinema português, Miguel Gomes. A Cara Que Mereces é uma revisita à infância, aos contos de fadas, as canções de embalar, às lendas, mitos e monstros. A longa é dividida em duas partes, cujo mote é a crise existencial de um homem que acaba de completar os seus 30 anos. O seu tom encantatório, a sua fina ironia, e a narrativa constantemente desconstruída ao longo do filme, são alguns dos sinais de que algo de singular emergiu no cinema português.
MONTANHA (2015), de João Salaviza
João Salaviza fez um percurso notável nas curtas-metragens com temática coming of age. Em 2015, apresentou-se no campo das longas com Montanha, um filme sobre David, um adolescente perdido numa Lisboa geométrica e vazia, obrigado a apanhar os cacos de uma família já desabada. É pesado e quente – os laranjas e amarelos-torrados dos loteamentos são uma personagem constante. As noites sentem-se e são abafadas. Montanha é um retrato social, filmado num estilo clássico, com planos fixos e longos, ao contrário do que habitualmente vemos nos filmes americanos sobre a adolescência. Um pequeno tesouro de Salaviza e do cinema português dos anos 2010.