No dia 1 de outubro elegeram-se presidentes para 308 municípios de Portugal. Mas as conversas centram-se apenas num ou dois. “Assisti a um presidente da câmara dessas grandes cidades a apelar à descentralização, toda a gente fala, toda a gente apela, mas não se faz”. Quem o diz é Afonso Dorido, o Homem em Catarse. O homem que canta sobre sítios onde o mar não chega.

Em “Viagem Interior”, terceiro álbum do guitarrista de Barcelos, é retratado um outro país que vive devagar e no esquecimento. Do norte ao sul, do rio Tua ao Guadiana, do alto de um castanheiro ou à sombra de uma azinheira, a música não se faz só de acordes e dedilhados.

A “viagem interior” de Afonso e dos que lá estão

Uma viagem com um “duplo sentido”. Por um lado, o “de reflexão, como aquelas viagens mantra” e por outro, o que nos faz olhar para o que se passa – e, sobretudo, para o que não se passa – para lá das serras.

As oportunidades em Bragança ou em Lisboa não são as mesmas. Afonso, apesar de dividir o seu dia-a-dia por Braga e Barcelos, está consciente das consequências de nos esquecermos que há mais vida para lá do litoral: “O que se tem passado ao longos destes séculos é termos de sair do interior para sermos aquilo que nós queremos”.

Direitos básicos como o acesso à educação e à saúde também não são facilmente garantidos como nas grandes cidades – “Um menino que tenha de ir para a escola em Macedo de Cavaleiros ou em Moura, deve ter a mesma oportunidade que um miúdo de Lisboa”, reforça.

“Não olhar para o país como este retângulo fabuloso que nós temos, mas olhar só para dois pólos do país”, é o que Afonso acusa de centralismo. É esquecer que Évora e Guarda também podiam fazer parte da discussão da localização da Agência Internacional do Medicamento, afirma.

O Marão não é barreira, como se canta no tema “Vila Real”, mas parece haver vozes que não se ouvem para lá dele.

Ana Maria Dinis/ComUM

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A cantiga é uma arma?

Nos tempos da revolução de abril, uma música popularizada por José Mário Branco dizia que “A cantiga é uma arma, eu não sabia”. Já Afonso sabe-o bem: “A minha arma é escrever canções e tentar fazer com que se continue a falar disso”.

O projeto “Viagem Interior” não é mais que uma voz que canta por aquelas que querem que, finalmente, se perceba que o interior também é Portugal. E é no tema “Bragança” que o Homem em Catarse toca na ferida, quando canta que “Os lobos de Rio de Onor não se ouvem em Lisboa”. Como quem diz que as vozes dos portugueses do interior não chegam até ao centro de decisões do país. Do nordeste transmontano, ouvem-se uivos de lobos da serra de Montesinho. Francisco Álvares, também conhecido por “Chico dos Lobos”, gravou os uivos e Afonso usa-os no tema.

É no interior onde quer ficar

Da roadtrip pelo interior, Afonso trouxe muito. Mas não a agitação de uma revolução. Lá não há filas de espera e arranjar lugar para estacionar não é um stress, explica o guitarrista. “É tudo mais calmo, é tudo mais à Alentejo.”

Por “Portalegre”, há quem deixe a agitação e a correria das cidades e vá para onde se respira um novo ar e se sente “o eco da nossa voz”. Neste tema, abraça a ideia de que também é possível trabalhar no interior: “Como o trabalho é muito de serviços, basta teres um computador e criatividade e podes trabalhar onde quiseres.”

Se por “catarse” se entende um estado de libertação ou purificação, foi no interior que Afonso encontrou “essa calma e uma forma de estar mais descontraída”.

17 temas, 17 locais

“Passei por mais sítios do interior como Alfândega da Fé, Castelo de Vide e escrevi mais coisas”, conta Afonso. Alcoutim, Tua, Lamego, Tomar, Vila Real e Monsanto, são alguns dos dezassete locais que ganham voz neste álbum. Cada música corresponde a um lugar e cada lugar tem uma história. 

O projeto “intemporal”, como assim o caracteriza, começou pelo Alentejo, aquando de uma visita à cidade de Évora, em 2011. Dois anos depois rumou até Covilhã e a partir daí surgiu a ideia de “fazer várias viagens pelo interior do país que combinassem numa só”, a tal “Viagem Interior”.

A produção do álbum, lançado em setembro de 2017, teve a ajuda de várias mãos amigas de Afonso, como Filipe Miranda, o homem por detrás de The Partisan Seed.

Gonçalo Costa/ComUM

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