“O povo é quem mais ordena”. Disse-o José Afonso, há mais de 40 anos, e o verso ressoa como se fosse hoje. A Catalunha mandou, e assim o teve. Depois de centenas de feridos, e as palavras de Rajoy que insultam o sangue dos que tentaram votar, a Praça da Catalunha gritou “Independência!”. O governo catalão fala de 90% de votos a favor do “sim”. Venceu a democracia, como sempre vencerá.
Muita tinta e imagens vão correr sobre o dia 1 de Outubro de 2017, em Barcelona. Fotografias e vídeos inundam os nossos feeds, de pessoas a dormir nos locais de voto para evitar que a polícia impeça o voto; membros da polícia catalã (Mossos D’Esquadra) à frente de civis, a desentender-se com as autoridades enviadas de todas as partes de Espanha pelo governo espanhol; ou idosos emocionados a votar pela independência.
Mas as imagens que ficam com mais força são as de violência. A carga policial madrilena impiedosa e insensível, que deixou eleitores de todas as idades, jovens e velhos, feridos e ensanguentados. O número mais consensual ronda os 840 feridos. Não foram pessoas vítimas de um terramoto, nem de um exército derrotado. Foram civis, gente comum, à procura de democracia e de expressar a sua vontade, que viram as urnas de voto arrancadas pela polícia.
Para mim, há uma leve distinção entre ordem pública e repressão popular. É-me muito complicado entender as palavras de Mariano Rajoy, o primeiro-ministro, e de Soraya Sáenz de Santamaría, vice presidente do governo, que se orgulharam da prática da polícia e da “lei”. “Se há algo a concluir do dia de hoje [ontem], é a força democrática do estado espanhol”, disse o primeiro-ministro. Ao que eu respondo: se há algo a concluir de ontem, é que o senhor primeiro-ministro adora opressão policial à moda antiga. E poucas palavras me deixam mais enojado que as de Sáenz de Santamaría, que disse que houve “profissionalismo das forças de segurança” em travar a “absoluta irresponsabilidade” catalã.
Desse ponto de vista, o 25 de Abril em Portugal foi irresponsável e anti-democrático. O 5 de Outubro foi irresponsável e anti-democrático. A narrativa repressiva e discriminatória do governo de Madrid é uma resposta francamente fraca (e aqui o “francamente” não vem por acaso), perante a vontade de milhões de eleitores. Mostrar orgulho pela repressão policial, que foi condenada em todo o mundo, é mau; e dizer que “não houve referendo”, depois de pessoas ensanguentadas ainda assim terem tentado votar, é desrespeitoso para com um povo que (ainda) pertence a Espanha.
Podemos argumentar aqui o dia todo se houve legitimidade em fazer o referendo. Todos fora Escócia e Venezuela vão dizer que não. Vão dizer que tem de ser aprovado pelo Tribunal Constitucional e mais burocracias e pardais ao vento, e só em 2020 é que se arranja um referendo mais ou menos de jeito. Mas posso compreender que não se aceite a realização do referendo. Mas depois de ontem, depois de mulheres serem arrastadas pelas escadas pelos cabelos, depois de polícia ter atirado com balas de borracha contra eleitores (repito: eleitores!), ninguém pode negar os resultados do referendo e a legitimidade do futuro governo da República Catalã (deu gosto escrever estas palavras).
Mariano Rajoy deve demitir-se. Para ontem. É inconcebível que um líder de governo de uma democracia ocidental, que sabe o que é viver debaixo de totalitarismo, possa aceitar e aprovar o que eu tenho moralmente de comparar a censura democrática. Não são precisos mais de dois dedos de testa para saber que mandar tropas anti-motim para uma zona politicamente instável é parvo. E não é preciso um spin-doctor para escrever um discurso que diga que o que mais de dois milhões de pessoas lutaram para ter é tudo menos um “espectáculo”.
Eu sou a favor da vontade do povo, acima de qualquer independência e governo. Seja em que país for. “O povo é quem mais ordena”. “O Estado é o povo”. “We the people”. E por aí adiante nos clichés democráticos. Ontem nasceu um país, e a democracia ganhou.