The Ooz, uma verdadeira travessia ao lugar mais secreto, disfuncional, delicioso e extravagante do produtor Archy Marshall, deixa-nos com a sensação de estarmos na presença de algo com sentido, cru e original. Dono de uma personalidade vocal inconfundível, King Krule sabe jogar com os seus dotes, apresentando-nos o equilíbrio perfeito entre fogo de artifício e comoção, poder vocal e instrumentais independentes de tudo o resto.

essr.net

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Criado ao longo de três anos, The Ooz é o primeiro trabalho do artista sob o pseudónimo King Krule, desde o lançamento do seu álbum de estreia, 6 Feet Beneath the Moon, em 2013. Tendo lançado vários projetos sob pseudónimos diferentes, nunca explicou a razão por trás destas escolhas. Poderá ser uma questão de atitude, e autoconfiança, em que Krule assume um papel mais central, mais aliado a um estatuto de frontman. De qualquer das formas, de uma coisa existe certeza, The Ooz é o trabalho mais evoluído e bem conseguido do artista até à data.

O jovem londrino apropria-se de diversos mundos musicais, gerando um género transcendental que passa pelo Punk Jazz, Trip Hop, Dub, Darkwave, Punk, Jazz Fusion, até ficarmos sem noção exata daquilo que ouvimos, ganhando uma perceção diferente a cada replay. Em “Biscuit Town”, faixa introdutória do álbum, Marshall aventura-se pelo rap jazzístico aliado ao R&B, com um beat uniforme e insistente.

“We all have our evils, we’re told just to keep cool”, desabafa King Krule em “The Locomotive”, numa onda de post-punk experimental. Um single curto, emotivo, com um jogo interessante entre as frases vocais melodicamente descendentes e a guitarra ascendente, e entre uma voz límpida e a rouquidão frustrada de alguém deprimido e obstinado. “The train it now arrives, I plead just take me home, step the gap of minds, he steps the gap of minds”, o comboio espelha algo obscuro, um refúgio deste mundo. “Dum Surfer”, segundo single lançado, apresenta acordes de sétima maior iniciais, reminiscentes dos seus trabalhos anteriores, com uma maturidade empírica. À mistura de solos excecionais ao saxofone e à guitarra, King Krule conta-nos a história de uma noite turbulenta num bar: “he’s mashed, I’m mashed, we’re mashed”.

O mesmo poema, recitado duas vezes, a primeira em espanhol, “Bermondsey Bosom (Left)”, e a segunda em inglês, “Bermondsey Bosom (Right)”. A ideia harmónica mantém-se nas duas versões, mas pequenas diferenças fazem com que os ambientes musicais se diferenciem de uma faixa para a outra. “Bermondsey Bosom (Right)” soa mais distante e sussurrada, apesar de ter uma maior presença da bateria jazzística, a voz relaxante do pai de Marshall equilibra este contraste. Comparativamente ao inglês, o espanhol é uma língua sonante e mais quente, daí o clima mais palpável em “Bermondsey Bosom (Left)”. De notar que o poema faz referência ao primeiro e segundo álbuns de estúdio do artista: “a new place to drown”/”un nuevo lugar en el ahogarse”, “six feet beneath the moon”/”a seis pies bajo la luna”.

spin.com

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Em “Logos”, sexta faixa do álbum, King Krule fala-nos da sua infância atormentada pelo alcoolismo da mãe, e de uma relação amorosa abusiva que deixou no passado: “we were soup together, but now it’s cold, we were glue together, but it weren’t to hold”. “Logos” significa razão, ou palavra, para o artista nada muda, o azar persiste, “the lights would change, the same logo”. É uma das peças mais bem conseguidas, com um flow viciante, baseado no R&B, o assunto é sério, e a voz de Marshall, gravíssima, traduz isso mesmo. O foco está no instrumental e na letra, e não nos artifícios vocais de Archy, como é provado no instrumental final.

“Lonely Blue” é uma balada com uma produção incrível. Mais uma vez, Krule menciona uma relação passada, em que “Blue” serve de pseudónimo para a pessoa em questão, nome usado em trabalhos passados. A ideia principal é a de um amor não correspondido, em que ela ainda tem esperança, mas ele já desistiu: “she still hugs the cold night air, still will search, the burdening city awaits, but he’s gone”. Marshall chega-se à frente com a sua voz versátil, algo que poucas vezes demonstra na sua totalidade, brindando-nos com volumes ondulantes riquíssimos.

Muitas vezes, desafinações propositadas traduzem fragilidade, ou vulnerabilidade. É o caso de “Cadet Limbo”, nona faixa do álbum, marcada pelo sentimentalismo de um Archy apaixonado. Num mix de teclados sintetizados, saxofones e R&B, o artista refere-se a si mesmo como um cometa perdido no espaço, perdido na beleza dela e na relação que criaram, “and had it really been this long? Since I got lost in space?”. Vinculada a esta faixa, surge “The Cadet Leaps”, simbolizando o fim do que nos é contado em “Cadet Limbo”: “the space cadet waltz’ through the sky, lost in his search for distant forms of life”. Triste, numa tonalidade menor, com samples de sons de chuva, é uma das faixas mais bem conseguidas do álbum. Marshall não precisa de dizer muito para entendermos o que quer dizer, e a tristeza que sente, transmite-a através da música, sem esforço algum. “Eyedress” recita o mesmo poema de “Bermondsey Bosom (Left)” e “Bermondsey Bosom (Right)”, mas desta vez em tagalog, primeira língua de um quarto da população filipina.

Relaxante, pausado, com dissonâncias agradáveis ao ouvido, surge “Czech One”. Lançado no quarto aniversário do seu álbum de estreia, “6 Feet Beneath the Moon”, é o primeiro single sob o pseudónimo King Krule, em quatro anos. Segue-se “A Slide In (New Drugs)”, cheio de ruído, confuso, dissonante e vulnerável. O artista exterioriza a sua falta de auto estima: “my skin is bleach, my hair is long, I have no teeth (…), my gums are raw and bleeding all of time (…) how can I be feeling the same as you?”.

“Half Man Half Shark” é um dos singles mais interessantes de The Ooz. Com grande foco na secção rítmica, linhas de baixo intrínsecas, mais virado para o punk-rock, King Krule aborda temas como a solidão e a alienação, “well, I suppose I’ll forever be the only one who knows, aspirations ingrown, girl, I’ll forever be alone”. O início, a frase “half man with a body of a shark”, aos berros, é a fusão das vozes dele e do seu pai. É uma referência a uma canção que o seu pai escreveu quando Marshall era novo, chamada “Body of a Man in the Belly of a Horse”.

O penúltimo single integrante deste trabalho, “Midnight 01 (Deep Sea Diver)”, é uma reflexão acerca de um episódio depressivo do artista. Marshall utiliza, mais uma vez, sons de chuva (que continuam em “La Lune”), acordes de sétima, uma bateria jazzística acompanhante, e um sample da música de abertura da série “It’s Always Sunny in Philadelphia”. A meio da faixa surge uma parte em que Archy murmura, quase inaudivelmente, em russo, o poema mais conhecido do famoso poeta romântico Mikhail Lermontov, “The Sail”: “A lonely sail is flashing white, amidst the blue mist of the sea! What does it seek in foreign lands? What did it leave behind at home?”.

The Ooz é uma carta aberta à intimidade do jovem Archy Marshall, ele expõe os seus problemas, e nós escutamos, sem julgamentos, sem questionar. O miúdo ruivo da voz inconfundível e heterogénea, floresceu mais uma vez, nunca deixando de ser fiel a si mesmo. Este álbum prova que a música nem sempre tem de conter punchlines e direções intencionais específicas para ser envolvente. Existe um lugar para sonoridades aéreas, espaciais, focadas na intenção, no sentimentalismo da palavra e da produção. King Krule atesta isso mesmo, de uma forma notável.