King Gizzard & The Lizard Wizard tiveram um ano ocupado, sendo este o quarto de cinco álbuns propostos para 2017. Polygondwanaland é a combinação e, ao mesmo tempo, o resultado dos últimos 5 anos de trabalho da banda, mas aperfeiçoado. É, de longe, o projeto mais experimental e desafiador dos australianos.
O álbum abre majestosamente com “Crumbling Castle” e somos desde logo invadidos por ritmos de jazz combinados com riffs poderosos. A música transita para um solo de flauta delicado, antes de se desintegrar num traiçoeiro tanger de sintetizador. “Crumbling Castle” apresenta-nos uma espécie de apocalipse. À medida que a condição humana piora, o castelo desmorona-se e é preciso encontrar um sítio para onde ir. A faixa de dez minutos de duração culmina com os últimos dois minutos a repetir a frase “Don’t want to be a crumbling, crumbling, crumbling castle”. Para mim, a melhor música do álbum.
“Polygondwanaland” fala-nos da terra mística no final do rio (We’re gonna get there. Follow where the river runs). É tão estranha quanto convida. Consigo perfeitamente imaginar esta música num filme de Tim Burton. A representação bizarra e macabra, juntamente com uma atmosfera melancólica, cria uma série de gráficos visuais que se traduzem em fantasias impressionantes. É de referir que a percussão aqui é brilhante. Marcam os compassos polirrítmicos fáceis de acompanhar e irresistíveis ao ouvido.
Segue-se “The Castle In The Air” e parece que chegamos finalmente à terra prometida. Tropeçamos numa paleta rítmica em constante mudança, onde as guitarras acústicas e um sintetizador dos anos 80 dominam os procedimentos, juntamente com a narração. Esta música sucede perfeitamente à faixa anterior. Isto é algo homogéneo durante todo o álbum – as músicas tendem a completar-se sucessivamente como uma história em que a música seguinte funciona sempre como uma espécie de extensão da anterior. Aliás, ao longo de todo o álbum, se analisarmos os versos, percebemos que há inúmeras referências a períodos e acontecimentos da história do planeta, passando pela pré-história, a mitologia antiga, a bíblia e a religião cristã (como é o caso dos mártires cristãos, em “Horology”), a idade média (referência aos médicos da peste, em “Inner Cell”), entre muitos outros. A genialidade do álbum está precisamente no facto de terem conseguido criar uma história que é, apesar de tudo isto, de caráter extremamente futurista. Em forma de sátira, aplicam o passado à construção de um mundo totalmente novo.
“Deserted Dunes Welcome Weary Feet” descreve o novo mundo como uma utopia, mas também como um lugar pré-histórico e perigoso onde os nossos corpos são pedaços saborosos para os dinossauros que vagueiam pelas dunas desertas. “Inner Cell” transporta-nos para um registo imediatamente mais negro, mais assustador. É aqui que começamos a sentir que afinal este lugar pode não ser assim tão bom.
“Loyalty” abrange perfeitamente todos os sons e estilos diferentes que King Gizzard exploram ao longo do álbum. A sexta faixa invoca o fenómeno da teofania, que significa a manifestação de Deus nalgum lugar ou pessoa. Fala-nos de um Deus que não se mexe, apenas observa e espera que lhe prestem homenagem, por ser tão grande o poder que possui. No final da música, acusa os seus súbditos de traição e questiona-se sobre a lealdade.
Em “Horology”, uma série de guitarras diferentes (elétricas e acústicas) e um baixo entrelaçam-se para homenagear o estilo indie que dominou a primeira metade da década. Também aqui há uma referência a personagens bíblicos. Neste caso, Abbadon, anjo que comanda um exército de insetos.
As últimas 3 músicas abrangem o tema da tetracromacia. Os humanos veem o mundo em 3 cores – Variações de vermelho, verde e azul (O chamado sistema cromático RGB). Um organismo tetracromata possui 4 células de cone distintas no olho, permitindo a discriminação de mais uma cor. Há milhares e milhares de anos, todos os mamíferos eram tetracromatas, mas ao longo do tempo foram geneticamente eliminados. Atualmente, esta condição verifica-se em alguns pássaros, peixes e outros animais.
“Tetrachromacy” apresenta-nos esta ideia de uma quarta cor que os seres humanos nunca viram. “Searching” é a transição misteriosa de um mero olho humano para um olho mais capaz. Mackenzie canta, “Doctor please… I want to see the world differently”. A cirurgia é bem sucedida. Agora conseguem ver a tal quarta cor (“The Fourth Color”), o que lhes concede poderes semelhantes a um Deus (“I see through walls / I see your heat / I can see your terror / I can see the future”).
Polygondwanaland é talvez dos melhores álbuns de rock progressivo em décadas. Uma história de exploração sobre algo ou alguém que está desesperadamente com medo de morrer e que viaja para a mítica “Polygondwanaland”, em busca da, também mítica, “quarta cor”.
Parece impossível lançar 4 álbuns no espaço de um ano. A conversa fica ainda mais duvidosa se nos disserem que são 4 álbuns de alta qualidade. Mas a verdade é que o fizeram e não se ficam por aqui. King Gizzard & The Wizard Lizard desenvolveram o seu próprio cosmos sonoro e alinham-se de forma hipnótica nas convulsões do ouvido. Conseguiram criar uma atmosfera verdadeiramente envolvente e mostraram a capacidade de progredir e melhorar, mesmo que experimentem e adotem novas técnicas e géneros. Para além da qualidade técnica impecável, a produção de Polygondwanaland implicou uma pesquisa intensa e um trabalho minucioso da informação utilizada na letra, da primeira à última música. Não é apenas um álbum, mas uma história completa, com introdução, desenvolvimento e conclusão.
O comboio que iniciou viagem em fevereiro deste ano e só efetua mais uma paragem. Segundo o líder da banda, Stu Mackenzie, o quinto e último álbum está previsto para o final do ano. Até lá, aguardamos ansiosamente.
9/10
2017
King Gizzard and the Lizard Wizard
Self Released