Dos bastidores de Hollywood aos escritórios das Nações Unidas, passando pelos pavilhões onde treinam as atletas da seleção americana de ginástica artística, têm chovido (torrencialmente) denúncias de assédio e abusos sexuais. Há uma semana, a ginasta que encantou o mundo nos Jogos Olímpicos de 2016, com quatro medalhas de ouro e o sorriso mais brilhante de todos, revelou ter sido mais uma das vítimas. Ou, nas palavras da colega Aly Raisman, uma das sobreviventes.
Chama-se Larry Nassar, tem 54 anos, foi casado até ao ano passado e é pai de três filhas. Durante mais de vinte anos, foi médico da seleção de ginástica dos Estados Unidos e da Universidade do Michigan. Simone Biles e Aly Raisman não foram as únicas. Há, pelo menos, mais 140 mulheres a acusá-lo de, por mais de duas décadas, ter oferecido “tratamentos especiais” a crianças e adolescentes a quem era dito para confiarem nele. Kyle Stephens tinha cinco anos quando foi abusada por Nassar, descrito como uma pessoa simpática e amável, pela primeira vez. Aconteceu na sua própria casa enquanto, noutras divisões, as famílias de ambos aproveitavam o domingo. Chelsea Markham tinha 10 e sonhava ser ginasta. Não passaram quatro anos até abandonar o desporto e, aos 23, suicidou-se. A história dos horrores que sofreu nas mãos do médico foi contada pela mãe, há poucos dias, em tribunal. Um dos 89 testemunhos ouvidos durante quatro dias.
A primeira queixa aconteceu em 1994, ano em que Larry Nassar foi promovido a coordenador médico da equipa de ginástica dos Estados Unidos nos Jogos Olímpicos de Atlanta. O caso foi abafado, tal como todas as denúncias que se seguiram até 2016, quando se sentou finalmente no banco dos réus. Não por causa dos abusos de que tinha sido repetidamente acusado, mas pela posse de pornografia infantil. Devido às mais de 37 000 imagens encontradas no seu computador, Nassar foi condenado, no final do ano passado, a 60 anos de prisão. Depois da onda de denúncias e de testemunhos, avivada pelo movimento “Me Too”, o futuro do antigo médico pode agora ser passar o resto da vida na prisão.
No dia 15 de janeiro, deparei-me com a notícia que dava conta da revelação de Simone Biles no Twitter. “Ela também?”. A pergunta que, nas últimas semanas, se tem formado muitas vezes na minha mente. Depois de ler o texto, fiz aquilo que sei que não devo fazer, para não perder mais um bocadinho de esperança na humanidade, e abri a caixa de comentários. Não estava preparada. ‘Virou moda’, ‘E só agora é que falam todas? Eram mas é umas malucas’, ‘Após estrelato e muitas medalhas de ouro, vêm com esta conversa’. Havia mais. Não desmerecendo o último comentário, que acusa crianças e adolescentes de serem sexualmente abusadas por interesse, quero salientar que os primeiros dois foram escritos por mulheres. Larry Nassar traumatizou centenas de mulheres antes de elas sequer terem noção do que lhes estava a acontecer e, surpreendentemente, continua a ser defendido por muitas mais pessoas em muitos mais comentários à volta do globo. A coragem de denunciar uma experiência traumática, revivendo-a para a partilhar com o mundo e tentar que ele seja um bocadinho menos injusto, não é mais do que um truque para chamar a atenção?
Felizmente, a maior parte das pessoas não pensa (ou não demonstra pensar) assim. Movimentos como “Time’s Up” e “Me Too” foram dos melhores e dos mais dolorosos que surgiram nos últimos tempos. Dos melhores porque, finalmente, se está a criar um ambiente um pouco menos hostil para que as vítimas de assédio e abuso sexual possam denunciar os seus agressores, para que percebam que não estão sozinhas e que, tal como Biles escreveu, a culpa não é delas. Dos melhores porque centenas de predadores sexuais estão a ser investigados – ou finalmente investigados, como no caso de Larry Nassar. Dos melhores porque talvez, em alguns casos, sejam condenados e se poupem algumas vítimas no futuro. (Quanto sofrimento se poderia evitar se Nassar tivesse sido investigado após a primeira queixa, em 1994?) Dos melhores porque os meios de comunicação não estão a deixar que muitos casos sejam esquecidos. Dos melhores porque estamos, enfim, a falar de problemas que, apesar de muito antigos, continuam a ser tabu.
Conhecer histórias de violência sexual todos os dias é doloroso. Sabemos que acontecem todos os dias, a todos os minutos, numa rua qualquer ou dentro de uma casa, dentro de um casamento. Sabemos que acontecem, mas não imaginamos que pudesse ser com a Angelina Jolie, com a Aly Raisman, com voluntárias em missões das Nações Unidas. Não havia nomes, não chegavam até nós os pormenores. E, sem que eu quisesse, o mundo tornou-se ainda mais assustador. Eu posso ser uma vítima, alguém da minha família, alguma amiga. Em qualquer lugar. Para onde foi a empatia das pessoas que comentam nas páginas de Facebook dos jornais? Como podem defender abertamente um pedófilo que abusou de mais de uma centena de pessoas durante duas décadas e meia?
A cobertura mediática destas denúncias deixará de ser tão intensa, em breve os vestidos negros da gala dos Globos de Ouro serão uma memória distante. Espero que, quando isso acontecer, todos estes silêncios quebrados tenham servido para que algo, sim, vire moda: a perceção de que o único caminho é denunciar. E de que não são as vítimas que devem sentir vergonha.