“Marie Colvin era uma cadela e agora está morta. Deixem os americanos ajudá-la agora”. A frase é atribuída ao militar que, no dia 22 de fevereiro de 2012, ordenou o ataque a uma redação clandestina na cidade síria de Homs. Com agentes de informação sírios, festejava o sucesso dos bombardeamentos que ceifaram a vida a Marie Colvin, uma jornalista de guerra norte-americana, de 55 anos, e ao fotojornalista francês Rémi Ochlik, de 28. Marie estava na Síria a cobrir o início dos confrontos entre Assad e a oposição para o jornal britânico Sunday Times. O seu assassinato foi supervisionado por Maher al-Assad, irmão do Presidente sírio, e valeu a promoção a líder da rede de informação de todo o país ao general Shehadeh, que liderou o homicídio. Marie Colvin foi uma entre os mais de 200 jornalistas que perderam a vida na Síria nos últimos sete anos.

Desde o início do ano, a Repórteres Sem Fronteiras (RSF) contabiliza um total de nove jornalistas, quatro jornalistas cidadãos e um colaborador assassinados. Há, neste preciso momento, 321 presos, entre jornalistas (181), jornalistas cidadãos (125) e colaboradores (15). E porquê? Porque ousaram exercer a sua profissão.

Javier Ortega e Paúl Rivas ainda não fazem parte destes números. A 13 de abril, na última sexta-feira, os seus assassinatos foram confirmados pelo Presidente do Equador, Lenín Moreno. O jornalista de 32 anos e o fotógrafo de 45, respetivamente, trabalhavam para o jornal colombiano El Comercio e tinham sido sequestrados a 26 de março por dissidentes das FARC colombianas enquanto investigavam a escalada de violência na província equatoriana de Esmeraldas, junto à fronteira com a Colômbia. Efraín Segarra, o motorista de 60 anos que os acompanhava, foi também raptado e assassinado.

A 22 de janeiro de 2018, o jornalista Mohamed Al-Qadesi foi assassinado no Iémen, durante um bombardeamento na província de Taiz. Era conhecido pelas suas fotos, que retratavam ações militares no país e o rasto de destruição que deixavam. Cinco dias mais tarde, Oussama Salem Al-Maqtari, jornalista cidadão, morre com um tiro na cabeça durante os confrontos entre o exército e os Houthis (movimento opositor do governo iemenita). Al-Maqtari trabalhava como freelancer para várias agências noticiosas nacionais e internacionais e, com o seu trabalho, chamava a atenção para o impacto da guerra civil nas populações iemenitas, agravado pelos bombardeamentos estrangeiros. O Iémen é considerado um dos países mais perigosos do mundo para jornalistas. Apesar disso, os profissionais locais não recebem, muitas vezes, a mesma preparação que os colegas internacionais.

Estes são apenas alguns nomes, ficando ainda muitas histórias da vida e da morte por contar. Laurent Castillo, de 28 anos, e Alfredo de Leon, de 30, foram assassinados em fevereiro com um tiro na cabeça. Os dois jornalistas da Guatemala desapareceram quando regressavam de uma reportagem e os seus cadáveres foram abandonados numa plantação de cana-de-açúcar. O facto de estes nomes não estarem no barómetro da Liberdade de Imprensa da RSF faz-me crer que os números assustadoramente elevados que lá encontramos sejam ainda calculados por baixo. Quantas mortes nem chegarão a ser notícia?

Na Índia morreram, em março, três jornalistas em menos de 48 horas, todos atropelados. O terceiro, Sandeep Sharma, de 36 anos, perdeu a vida quando a sua mota foi derrubada por um camião, que um vídeo mostra ter-se desviado abruptamente na sua direção. O motorista fugiu. Segundo a Amnistia Internacional Índia, Sharma já tinha pedido proteção policial depois de sofrer ameaças de morte. O Comité para a Proteção de Jornalistas (CPJ) afirmou, no ano passado, que 27 jornalistas foram mortos na Índia desde 1992 com “completa impunidade”. Só entre 2014 e o dia de hoje, 15 jornalistas já perderam a vida no país.

Dos jornalistas agredidos no Brasil durante as manifestações contra e a favor de Lula da Silva ao fotógrafo palestiniano, Yaser Murtaja, baleado por soldados israelitas enquanto cobria os protestos na fronteira, é impossível fechar os olhos à violência crescente contra profissionais de informação, cada vez mais considerados alvos a abater. Há já vários anos, assistimos a retrocessos nas democracias, dos quais esta guerra à informação – e, consequentemente, aos jornalistas – é um dos principais sintomas.

Aziz Assad fugiu da Síria em 2015. “Quando eras detido pelo regime, era muito melhor que te prendessem como militante armado do que como alguém que estava a documentar crimes que estavam a ser cometidos. Era melhor, muito melhor, ser acusado de andar com uma arma do que com uma câmara”, contou, em entrevista ao jornal The Intercept.

Esta declaração choca-me e assusta-me, mas, no meio do horror, deixa-me orgulhosa. Se é verdade que as forças sírias temem mais as câmaras do que as armas, se Bashar al-Assad teme mais os jornalistas e as pessoas que divulgam vídeos no Youtube do que os próprios rebeldes, então é porque estes estão a fazer bem o seu trabalho. Se estas vozes incomodam a ponto de serem consideradas alvos tão importantes (como Marie Colvin, cujo assassinato, relembro, foi supervisionado pelo irmão do Presidente), então é porque só podem estar a contar histórias que precisam de ser partilhadas. Se a tentativa de as calar é tão feroz, é porque revelam segredos que alguns queriam manter bem guardados.

Mas, se é fundamental que a informação continue a circular, é igualmente necessário que os jornalistas (e outros com funções semelhantes) sejam mais e melhor protegidos. Como futura jornalista, custa-me muito pensar que esta ainda é uma profissão de risco, mas é preciso. É preciso lembrar as vidas ceifadas simplesmente por fazerem o seu trabalho, as vidas que terminaram com tanta violência, tantas vezes premeditada. É preciso saber que não podemos construir um mundo melhor quando perdemos vozes que se levantam contra as injustiças e não as vingamos, não as multiplicamos.

Carlos Domínguez Rodríguez. Jefferson Pureza Lopes. Mohamed Al-Qadesi. Oussama Salem Al-Maqtari. Ján Kuciak e Martina Kušnírová. Vijay Singh e Navin Nischal. Sandeep Sharma. Zeeshan Ashraf Butt. Yaser Murtaja. Javier Ortega e Paúl Rivas. Pamika Montenegro. Abdul Rahman Al Yacine. Bashar Al-Attar. Khaled Jamal Hamo. Laurent Castillo e Alfredo de Leon. Esta lista (muito provavelmente incompleta) é o resultado de pouco mais de quatro meses. Como disse Marielle Franco que, apesar de não ter sido jornalista, foi assassinada exatamente pelos mesmos motivos (por denunciar realidades que muitos poderosos queriam calar): quantas mais vidas serão precisas para que esta guerra acabe?