Fundada em 2013, a Literatuna, a tuna de letras da Universidade do Minho, é dos grupos culturais mais recentes da universidade. Entre as aulas e as mesas que enchem o ILCH, a tuna mista vai ensaiando, olhando como exemplo para o resto que se faz pela UMinho.
A início foi um sussurro, nas mentes de estudantes de línguas. A Literatuna é uma tuna ainda jovem, que se aventura na tradição académica portuguesa. Motivada pelo convívio e companheirismo, um dia ergueu a voz para acompanhar tunas com mais história. As canções das suas performances ecoam o passado da cultura portuguesa, mas o grupo olha em frente.
A tuna reúne-se num auditório do Instituto de Letras e Ciências Humanas (ILCH), no campus da Universidade do Minho, em Braga. O espaço, que durante o dia recebe várias aulas, é palco de ensaios duas noites por semana. Assim, enquanto aulas decorrem noutras salas, as paredes à prova de som do auditório absorvem o ruído das várias vozes e instrumentos que adornam um espírito festivo.
A tuna mista, com apenas quatro anos contados, começou como um desejo de manter o contacto com a universidade depois de concluídos os estudos. O grupo surgiu pela mão de alguns alunos dos cursos de línguas e culturas da Universidade do Minho. “Sentimos que faltava um outro projeto aqui no ILCH, e esse projeto acabou por ser a tuna de letras”, explica o magister José Rodrigues.
Na génese desta tuna mista, encontram-se os valores de amizade e de convívio que os seus criadores pretenderam transmitir às gerações universitárias vindouras. Contudo, de acordo com o magister, “as outras tunas também promovem o convívio e a amizade”. ´Calígula´, como é apelidado pelos colegas de tuna, revela que o grupo surgiu porque os seus membros queriam algo apenas seu.
Desde a sua fundação, em dezembro de 2013, nem sempre usufruíram destes espaços. “Dantes a nossa dificuldade era logística, porque não tínhamos esta magnífica sala que o Instituto de Letras nos deu. Tínhamos de trazer os instrumentos de casa, ou então guardávamo-los na sala dos Núcleos da altura”. Naquela altura, a tuna realizava os seus ensaios nas salas que certos núcleos lhes cediam para o efeito, até conseguirem uma solução mais conveniente.
Apesar da Literatuna possuir um espaço próprio na universidade, José Rodrigues tem acompanhado com alguma atenção as dificuldades sentidas por outros grupos culturais. “A realidade que eu conheço é a de que as salas precisam de ser remodeladas”, referindo-se às condições atuais dos grupos sediados no Bar Académico. “Não saberia falar sobre o que é preciso fazer ao certo, porque estou aqui na UMinho, um bocado privilegiado”.
Por este motivo, ‘Calígula’ julga pertinente o foco do Enterro da Gata deste ano, que foi “A Gata quer casa”, alusivo ao edifício da sede da Associação Académica da Universidade, onde ensaiam grande parte dos grupos culturais em Braga. “Se alguns grupos não têm casa onde estar, acho que vem a propósito o tema deste ano do Enterro, porque esses grupos podem usá-lo para reivindicar as suas necessidades”.
Nova tinta para escrever mais páginas
É preciso sangue novo, mas como em muitos grupos culturais, anda complicado arranjar. Segundo ‘Calígula’, entraram menos novos elementos na tuna este ano. Procuram diferentes modos de cativar novos membros, mas não tencionam mudar a mensagem essencial. “É um grupo que gosta de se divertir, que durante aquelas quatro horas por semana trabalha, mas fora disso gosta de se divertir. Vamos conviver para aqui ou para ali, vamos beber ou vamos fazer uns piqueniques”.
A praxe, como algumas outras tunas, é uma realidade mesmo neste grupo, mas que José Rodrigues afirma ser diferente das outras. “Existe praxe, existem caloiros, mas não no sentido de berrar ao pé do Prometeu ou na zona dos bares”, esclarece. “Existe mais uma espécie de ensinamento da música e da tuna, do que propriamente essas práticas de recreio.”
O magister considera, apesar de tudo, a situação passageira. Depois da tempestade, virá a bonança. E, enquanto não chega mais gente, vão-se divertindo. “Eu, pelo menos, vejo uma tuna como sendo 50% de música e 50% de convívio. Se estivermos a tocar em palco e não estivermos a gostar do que fazemos, em comunidade, estar na tuna não seria bom”, argumenta o magister. A tuna atualmente conta com 50 elementos, activos e não-activos.
Quem acaba o curso e trabalha, vai ficando enquanto dá. É através da tuna que mantêm uma ligação à universidade depois dos estudos, e contribuem para o bom convívio dentro do grupo. Para José Rodrigues, “o benefício maior é o seu gosto pela música e pela universidade. Mais que tudo, a mais valia dos que têm os estudos terminados é o gosto e o espírito que trazem”.
Os laços não se restringem à Literatuna, pois também surge uma afinidade com outros grupos. Inclusive, alguns elementos da tuna também pertencem à IPUM (Associação de Percussão Universitária do Minho). “Acho que por esse Portugal fora é inevitável encontrar tunas com uma personalidade parecida à da nossa. O espírito é o mesmo, os valores são os mesmos e a maneira de estar é a mesma”, comenta o magister.
Como qualquer grupo jovem, há que olhar para os mais crescidos. Na Universidade do Minho, encontramos tunas já com mais de 25 anos, como a Tuna Universitária do Minho, a Gatuna, a Tun’Obebes e a Afonsina. Por isso, há que olhar para os exemplos. “Olhamos para as tunas mais antigas com alguma reverência e tentamos aprender com elas porque, se têm sucesso, alguma coisa estão a fazer bem. Julgo que não temos influências diretas. Olhamos para o seu espírito e a sua maneira de trabalhar, mas não pretendemos imitar, porque assim não aprenderíamos nada”, explica José Rodrigues.
Se todas as tunas se dizem festivas, a Literatuna não é diferente. ‘Calígula´ rejeita a noção de que as noitadas prejudicam os estudos. “O estudante boémio não é o estudante javardo que compromete as aulas e os estudos para ir para os bares. Um estudante boémio, no sentido mais lato do termo, seria alguém que não descura nenhuma parte da vida de estudante”.
Mas se há coisa que aprendemos na vida, é que as coisas boas acabam. ‘Calígula’ assume que, apesar de gostar de estar na Literatuna, eventualmente a vida e o trabalho vão ter de o afastar. Por enquanto, vai ficando, mas o magister não esconde a tristeza em pensar no futuro. “Posso dizer que, se um dia isso acontecer, ficarei muito triste e vou passar um tempo difícil sem o convívio semanal que tenho aqui com o pessoal. Espero que não, mas todos temos o nosso tempo.”
Afinam-se as vozes para o ensaio
Em início de noite, no ILCH, vários membros da Literatuna preparam-se para mais um ensaio no pequeno auditório. O soalho do chão coincide com as paredes revestidas por madeira, num tom castanho claro. O espaço é largo, mas apertado, próprio para as aulas comuns. O espaço para o ensaio é estreito, entre uma secretária grande e as inúmeras cadeiras azuis-escuras. Alguns membros chegam atrasados, vindos das aulas ou do trabalho, entre a afinação de instrumentos e os exercícios de aquecimento de voz.
Bruno, um caloiro, afina o contrabaixo antes do começo do ensaio. Como o contrabaixista está atrasado, Bruno oferece uma ajuda. “Quando vim para aqui já sabia guitarra e baixo, mas sou um autodidata”. O ensaio começa com afinação de voz em crescendo. Os elementos convergem para a secretária em semicírculo. Francisco, um outro tunante, coordena o aquecimento com uma melódica. Espera-se a chegada de César, o ensaiador.
Por entre os elementos podem ser observados vários instrumentos, dispostos em posições diferentes. Num momento o timbalão é o protagonista, enquanto noutro é a pandeireta. “O trémulo da pandeireta tem de encaixar com o trémulo do bandolim”, César avisa os tunantes. Os rascunhos, enquanto novos membros do grupo, usam uma túnica azul-escura que as distingue dos demais. A tuna tem também uma guitarra oriunda da União Soviética, que guarda como uma relíquia.
Com o intervalo o semicírculo desfaz-se por uns minutos. Patrícia Ribeiro, a vice-magister, aproveita para explicar a constituição do grupo. “Como o nosso repertório é diferente do das outras tunas, o ensaio e a disposição também são distintos das outras. Enquanto outras tunas se organizam por naipes de instrumentos, a Literatuna organiza-se por quatro naipes vocais (baixos, tenores, contraltos e sopranos). A percussão não cumpre a regra, fica nas pontas para não abafar as vozes e para permitir uma maior liberdade de movimento às pandeiretas”.
Durante o ensaio são abordadas várias canções. Para César, o desempenho do grupo varia; se em algumas músicas sente que estão bem, noutras pede por mais treino em casa. À performance de “Elsa”, uma canção espanhola, falta a coordenação. Mas o “Malhão Malhão” corre melhor. Maria João, guitarrista, assume o centro do grupo com voz afinada. Numa outra canção, a descoordenação dos passos de dança merece um esforço redobrado.
Na reta final do ensaio, o pessoal dispersa para treinar em grupos. Terminado o dia, quem faz parte da tuna imagina como vai correr o concerto seguinte. Os próximos meses prometem novos festivais, com mais viagens e mais experiências. Nascem memórias, a recordar num futuro em que os tempos de estudante há muito terminaram. Um dia, poderão contar que a Literatuna se fez ouvir. Para já, vai crescendo a voz.