O penúltimo dia de Enterro da Gata foi marcado pelo hip hop nacional. Depois da atuação de Kappa Jotta, a dupla formada por Mundo Segundo e Sam the Kid, deu um espetáculo que contou também com DJ Guze, DJ Cruzfader e um convidado especial: Maze.
Mundo Segundo e Sam the Kid levam uma longa carreira como artistas a solo, mas a parceria entre os dois está para durar. Ambos cooperaram em palco para recuperar alguns clássicos de cada um, cantar músicas mais recentes feitas em conjunto, tudo em jeito de viagem pelas suas vidas e carreiras no hip-hop nacional.
O Hino da Universidade do Minho tem uma passagem que diz “estes anos são viagem”. Vocês usam muito o storytelling no vosso conteúdo lirical. Aqui em Braga encontraram um público que abraçou esse espírito do hip hop?
Sam the Kid: Sim, sem dúvida! Grande público. Acho que foi isso uma das coisas que marcou este concerto em específico. Mas para ser sincero, pelas outras vezes que viemos a Braga, mesmo que não seja neste contexto do Enterro da Gata, temos sempre uma boa imagem do público de Braga. Vê-se que, em geral, são pessoas conhecedoras da cultura, tanto de coisas mais recentes, como mais antigas. Dá para ver que têm cultura, mesmo que sejam pessoas novas. São pessoas que investigam e interessam-se pelo que se passou e pelo que se passa.
Na vossa opinião, como está o hip hop de hoje em dia, em Portugal? Acham que se dá mais valor à língua portuguesa ou, por outro lado, há mais “Poetas de Karaoke”?
Mundo Segundo: Pessoalmente, acho que continua a haver artistas bons, com relevância, que se preocupam em escrever bons textos. E depois, como em tudo, quando há mais quantidade, a qualidade começa a ser duvidosa, mas isso é normal. Faz parte. Desde que, de x em x tempo, vão aparecendo uma, duas mãos cheias de bons produtores e bons MCs que inspirem outros a seguir. Eu acho que no nosso tempo dava-se muito valor à cena do “tens de ter uma letra espetacular”, “tens de ter skills” e o pessoal vai-te por à prova. Se não tens skills, não vais ser aceite. Hoje em dia, para as pessoas no geral que não são do hip hop, é uma coisa quase que secundária. Mas nós (Mundo e Sam) gostamos da cultura, continuamos a valorizar isso e a acreditar que realmente existem bons artistas.
Passamos atualmente por uma fase de grande influência do trap americano. Há cada vez mais pessoal a tentar recriar essa tendência americana.
Mundo Segundo: Há pessoas que fazem trap porque realmente se identificam com aquele tipo de sonoridade e há outras que fazem-no por moda, que já tiveram outro tipo de linguagem no passado, uma cena mais clássica e agora viraram um pouco para o trap. Nada contra, mas se daqui para amanhã bater o miami bass (estilo de hip hop, popular nos anos 80 e 90 nos Estados Unidos da América e na América Latina) e forem fazê-lo, vê-se que é pessoal que anda um bocado atrás da moda. O que é importante é que se tu és uma pessoa que faz trap e se genuinamente é esse tipo de som com que te identificas, faz a tua cena! Às vezes o Sam costuma dizer nas entrevistas, desde que faças uma cena que é boa, tem que se reconhecer que é bom. Pessoalmente, eu não faço trap, mas gosto de alguns artistas de trap. São quase todos franceses. Poucos são os artistas de trap americanos que eu gosto. Franceses existem uns quantos que eu ouço no meu carro, que passo no meu programa de rádio (Skills by Mundo Segundo, na Radio Nova Era). Claro que conto esses artistas pelos dedos de uma mão, mas há sempre coisas boas que vão aparecendo. A nossa linguagem (do Mundo Segundo e do Sam The Kid) é a linguagem clássica do hip hop. É samples, batidas fortes.
E uma boa mensagem também.
Mundo Segundo: Sim, mas não quer dizer que toda a gente tem que ser como nós. Aliás, nós nem queremos que sejam como nós porque não queremos que ninguém nos venha copiar (risos)! A grande diferença que noto no trap para a nossa altura é que hoje não há um problema se dez pessoas soarem igual, toda gente rimar da mesma forma ou usar o mesmo tipo de batidas. No nosso tempo, se tivesses uma batida parecida com a do vizinho eras considerado um biter. Agora é algo secundário, foi-se perdendo isso. Mas talvez a coisa que valorizamos mais no hip hop, que eu mais valorizo é a autenticidade. Fazeres aquela cena que te representa, sem teres de estar a seguir um trending.
Sam the Kid: Vou-te dar um caso: os Black Eyed Peas. Começaram com uma certa forma (de música), que nos satisfazia. Nós que gostamos mesmo de hip hop, pelo menos os primeiros álbuns. Depois quando entrou a Fergie foram para um universo mais pop e perderam essa base (de público de hip hop). Fizeram uma cena a tentar voltar à sua identidade anterior, mas nós estamos lixados com eles (risos)! Tens que estar com o pessoal (público) e ele acompanhar-te, como há artistas assim hoje: o J Cole, o Kendrick Lamar. São artistas que não estão a fazer esse tipo de move, que é fazer “o que tá a dar” e assustar as pessoas que te estão a ouvir. Hoje em dia, há alguns rappers que são maus e têm popularidade. Mas se tivermos que culpar alguém é o público. Antigamente, havia certas coisas que eram podres, mas às vezes tinham uma equipa por trás e uma editora. Eram impostos às rádios e uma pessoa tinha de levar com aquilo. Agora há muitos miúdos que não têm uma qualidade por aí além, mas é válido. Fazem o que quiserem. Eles são popularizados pelo próprio público e de forma independente. Eles não obrigaram ninguém a curtir da cena, tas a ver? As pessoas é que os puseram lá em cima, por isso… It is what it is.