A poucos dias da Gata morrer definitivamente este ano, a Opum Dei prepara mais um velório da bichana. A Ordem Profética da Universidade do Minho dá início às celebrações do Enterro da Gata com a Via Crucis a 7 de maio.
“Ninguém entra ou sai depois de fecharmos a porta. É segunda-feira de culto”. Num local secreto, algures num canto recôndito do Bar Académico (BA), os membros da Opum Dei reúnem-se para mais um “ensaio”. Inquietos, os profetas andam de um lado ao outro a preparar o pequeno auditório para a sessão de cinema que vai decorrer. Mexem-se as cadeiras, liga-se o projetor, vão-se buscar as colunas ao carro e pergunta-se pelo vinho. “Tinto ou verde?”.
Enquanto as colunas não chegam, o filme não pode começar. No tempo de espera, aproveita-se para pôr a conversa em dia, falar sobre a sessão e encher as malgas com vinho. Em baixo da tela, Tiago Abelheira, profeta da Opum Dei e moderador da reunião, senta-se em frente ao teclado.
De óculos escuros nos olhos e capa roxa aos ombros põe a tocar músicas clássicas e Eurodance, embutidas no aparelho. Revela, ainda, os dotes ao piano com o primeiro compasso da “Hedgwig’s Theme”. “Tentamos fazer pelo menos uma vez por mês uma segunda-feira de culto”, explica Tiago. Na edição anterior explorou-se a temática do “Porno de Anões”. Este mês, o tema é “Animais Exóticos”. “As sessões são muito aleatórias, mas importantes para reforçar o nosso sentido crítico”.
A Opum Dei nasceu a 13 de maio de 1991. Definem-se como um grupo satírico e espiritual que dá voz aos oprimidos e à revolução. Profetizam aquela palavra que muita gente não quer que seja dita e que a maioria não conhece.
“Procuramos chamar à atenção para muitas coisas que se passam a nível académico e nacional. Por exemplo o investimento no ensino superior, a passagem da universidade para fundação, as suspeitas que existem sobre muitas das pessoas que têm cargos dentro da instituição, as parcerias manhosas e a rampa de lançamento que é a AAUM para as juventudes partidárias”, explicam os dois diretores da Opum Dei, Profeta “Canário” e Profeta “Maminhas”, que preferem não revelar o nome civil.
O objetivo da Ordem Profética é animar o público, sempre com as vertentes do humor e da crítica, que “nunca podem ser desassociadas do grupo”. “As atuações são muito para animar o público e dizer umas coisas sociais pelo meio”. Nas aparições inserem alguns instrumentos, mas frisam que não são uma tuna, nem procuram ser exímios ao tocar. “Somos mais banda que tuna. Usamos instrumentos elétricos, aliás temos um núcleo ligado à música, a ‘Rockundei’, que usamos quando achamos que é o momento certo”.
Uma voz que ainda incomoda
Mesmo contando com quase três décadas de história, “Canário” e “Maminhas” ainda sentem que há quem olhe com maus olhos para as atividades da Opum Dei. “Às vezes, abordar assuntos tabus, que não aparecem nos jornais, nem são falados pelos críticos da televisão, incomoda muita gente, como a reitoria”.
Relembram uma atuação na Universidade Católica, onde não foram recebidos da melhor forma. “Fomos convidados a atuar pelo presidente da associação académica, sabendo ele quais eram as nossas características, e provou-se que não se adequou. Os padres desligaram a luz, o som e interromperam a nossa atuação. Mas o pessoal continuou a cantar! Aí viu-se que certos poderes, como a igreja, ainda têm algum retrocesso e não são muito abertos às nossas características de irreverência”.
A Opum Dei faz questão em abordar estes assuntos tabu dos “tachos”, dos esquemas e das “cunhas”, mas aponta também o dedo a um certo conformismo. “É uma voz que, para além de nós, não existe muito na Universidade do Minho. Os estudantes em tempos já foram uma força muito poderosa no país, e neste momento o pessoal quer é borga e preocupam-se pouco se estão a ser roubados. O estudante ideal há de ser sempre aquele que tem uma consciência política e social, que não tem qualquer tipo de preconceitos e que é irreverente, e que tanto sabe estar numa festa como num debate”.
Os tempos são diferentes, mas há coisas que não mudam. A sala da Opum Dei é uma situação que os diretores não deixam de sublinhar. “Canário” explica que a Ordem nunca teve um local próprio onde se reunir e ensaiar. “A maioria dos grupos tem uma sala e nós nunca tivemos, mesmo sendo um dos grupos mais antigos da universidade”. Há muito tempo que tentam reivindicar a situação, junto da AAUM e da universidade, mas sem sucesso. “Hoje o ensaio é aqui no BA, mas…”.
Os diretores também são rápidos a apontar a falta de apoio monetário para a Opum Dei. “Quando a Ordem surgiu, tínhamos financiamento e os nossos fundadores iam em digressões”. Hoje em dia, o dinheiro que mantém a Opum Dei a funcionar vem do bolso dos membros ou das festas que organizam. “Fazemos o que podemos com o que temos”.
Gata em coma, Via Crucis à porta
A Opum Dei preza muito o secretismo. Em primeiro lugar, não é qualquer um que entra na Ordem. Há um série de parâmetros que o candidato tem de cumprir. “A Opum Dei não é um bar aberto. Não somos uma tuna em que entra qualquer um. Só aceitamos profetas.”, sublinha “Maminhas”.
Da mesma forma que não entra qualquer um na Opum Dei, não são reveladas as missões proféticas realizadas antes da Ordem enterrar a Gata. “A maioria das nossas missões antes do Enterro não são assim tão complexas. Vamos um pouco por todo o país e de modos que tentamos chegar aqui na altura certa”.
O Velório da Gata é o principal evento da Opum Dei e também o mais antigo. Remonta ao início do grupo, há 27 anos atrás, e começou como forma de tentar criar um movimento de contestação. “O velório sempre foi uma coisa animada, uma coisa que atrai quem vê e tem sempre uma componente de crítica, por detrás. Vamos dizendo coisas pelo megafone e são mensagens sobre o que se passou naquele ano, na academia e no país. É um bem que oferecemos à cidade de Braga”.
Neste momento a Gata está em coma induzido. A Opum Dei vai acordá-la no dia 7 de maio para a Via Crucis. Aí, ela vai perecer definitivamente, este ano. Durante uma semana vai-se chorar a morte da bichana. Dia 11 realizar-se-á o Velório que marca o início das Monumentais Festas do Enterro da Gata, antes também das Serenatas.
A Gata ressuscita e volta para o próximo ano, onde a tradição se repetirá.
Uma savana de analogias
Quando as colunas finalmente chegam, os profetas sentam-se nas cadeiras cedidas pelo BA e a porta do pequeno auditório é fechada. “Agora só se sai na pausa para tabaco”, informa Tiago Abelheira antes de carregar no “play”.
Apagam-se as luzes e faz-se silêncio. O documentário de 2016 da National Geographic, “White Lions Royal Family” começa a passar na tela branca. Com o vinho nas mãos e os olhos nos animais exóticos da savana africana, os profetas analisam minuciosamente cada minuto. Tiago vai traduzindo algumas passagens da narração para os colegas apontarem. Nos momentos mais grandiosos da obra cinematográfica, quando a música entra em crescendo e as imagens brilham, os profetas batem palmas, emocionados com o “milagre da natureza”.
Após serem visualizados quinze minutos do filme, é hora de explorar as mensagens subliminares. O documentário serve de base para se analisar a sociedade e as hierarquias sociais. O objetivo é aguçar o espírito crítico, irreverente, divertido e aleatório que caracteriza as aparições da Opum Dei.
O debate decorre como se de uma assembleia se tratasse. Antes de falarem, os profetas levantam os braços e, ordeiramente, Tiago, o moderador, dá a palavra a cada um deles. Cada elemento tem um tempo limite para expôr a sua ideia e tal como nas assembleias, assim que o tempo da intervenção começa a escassear, o moderador pede para acabar.
Desenham-se teorias javardas e muito rebuscadas que traçam paralelos entre as elites da savana e as elites da universidade. Trocam-se ideias e impressões. Constroem-se e desconstroem-se analogias. “Alguém está a apontar isto em ata?” Relacionam-se partes do documentário com a vida social na academia minhota. “A AAUM são os leões”. “Não, nós somos os leões. A AAUM são os suricatas”. “Não, nós somos as gazelas”. “O rio são os alunos e os elefantes são a AAUM”.
No fim, vota-se sobre as analogias apresentadas para se chegar a um consenso sobre o significado das partes do documentário. “Conseguimos fazer uma votação mais rápido do que uma RGA.” É a afinação da sátira desajeitada que caracteriza a Opum Dei.
Com a discussão terminada e a votação fechada é hora de mais uma pausa. Quando recomeçam, já não permitem que o “voyeurista” assista. “Vamos tratar de assuntos muito importantes e secretos, que não podemos revelar”.
O “ensaio” acabou, mas a Opum Dei continua as suas atividades. Em segredo, não fosse a Ordem Profética mantida sob um nevoeiro de secretismo.