O que é Possessão? É complicado sequer descrevê-lo. Possessão, antes de ser insatisfatoriamente rotulado de um filme de terror, ou de suspense, é muito bem um drama existencialista. É sobre o amor obsessivo, a fé abalada, Deus, a loucura, o desejo carnal, a traição, o fracasso da instituição familiar. Nada neste hibrido deve ser resultado de uma interpretação literal: Possessão é uma alegoria ao divórcio, explorando os seus efeitos devastadores e as consequências para terceiros.

Testemunha-se a separação de um casal na Alemanha Oriental, numa Berlim sempre assombrada pelo Muro e com outras repercussões, como a custódia do filho e o relacionamento extraconjugal de Anna (Isabelle Adjani), reflexo da ausência do seu marido Mark, vivido por Sam Neil. Testemunha-se também o crescimento de um monstro (muito ao estilo lovecraftiano) que se ergue entre todos, num apartamento escuro, nos arredores da cidade.

A obra cobre toda uma linguagem simbólica e plástica, que constrói uma acerba crítica político-social. A atmosfera da capital alemã é onírica: as ruas são quase sempre vazias de pessoas e, quando estas aparecem, têm comportamentos artificiais, tipo pantominas. Tudo parece normal, mas… não o é.

O “monstro” é fruto da culpa, da vergonha e dos profundos desejos sexuais manifestados pela esposa. O novo, a mudança, surgem esculpidos sobre a forma de larva humanoide que faz de carcaças alheias o seu casulo e Adjani alimenta-o, cuida-o, ama-o, como se deste tratasse de ser o seu marido, filho e amante. O “monstro” é, na verdade, uma versão “melhor” de Mark, o ideal de marido para Anna, criado num decrépito apartamento secreto. Anna também tem uma versão melhorada aos olhos do seu marido – Helen, a professora do filho Bob.

O conflito matrimonial é ele próprio irónico, comparando-o ao cenário em que vivem: a guerra entre eles não é uma Guerra Fria, as interpretações são quentes.

Poucas sequências no cinema ficaram tão gravadas na minha memória quanto do esgotamento de Anna num túnel do metro. É uma forma física de corrosão do relacionamento, ao contrário de todo o declínio psicológico e emocional que foi experienciado ao longo da obra. É personificado na forma de um aborto (ou um descargo de consciência?) – o fruto de todo o relacionamento – de qual deles?

Anna entrega-se ao delírio e completa a sua criação.

Isabelle Adjani como Anna é insana e histórica – uma reminiscência de A Woman Under the Influence, de Cassavetes. A sua beleza pura contrasta com o clima perturbador da obra, assim como a sua interpretação fervorosa, com os seus ocasionais espasmos de psicose. Isabelle Adjani vive aqui um dos papéis mais impactantes da sua brilhante carreira. A atuação de Sam Neill também é sensacional. A sequência do ataque da epilepsia histérica de Mark, num quarto motel, é, sem dúvida, um dos pontos altos da obra.

Possessão é uma obra esquizofrénica do mestre polaco Andrzej Zulawski, que demonstra um domínio único da mise-en-scène e uma direção de atores soberba. O filme choca, mas não chocam também os recônditos da natureza humana?

Nenhum monstro ou possessão demoníaca pode ser pior que os problemas da mente ou da carne, coisas indissociáveis: se uma sofre, a outra sangra.