Oito anos depois, e às cavalitas de um novo disco, os Dear Telephone preparam-se para o seu maior concerto: dia 18 de agosto, em Paredes de Coura.

Estamos do outro lado do Cávado, à sombra do centro histórico de Barcelos. O Xispes não é muito longe. Na margem oposta, vê-se o parque que dá casa ao Milhões de Festa. E, rodeados de tantos locais emblemáticos, os Dear Telephone ensaiam.

Pedro Oliveira e Ricardo Cibrão são os primeiros a chegar. Mas não se pode entrar sem as chaves. É André Simão que as tem. Alguns minutos depois, o músico estaciona o carro em frente à porta. “Vê-se mesmo quem manda aqui”, brinca Ricardo ao cumprimentar o amigo, que lhe responde com um sorriso de cumplicidade que só largos anos de amizade criam.

“Cut”, o segundo álbum dos Dear Telephone saiu em outubro de 2017 e, desde então, a banda barcelense tem andado um pouco por todo o lado a apresentar o projeto. No sábado anterior, tocaram nos Arcos de Valdevez e, por isso, a sala de ensaios está arrumadinha. É preciso desarrumá-la para começar a praticar. Trazem-se os instrumentos, monta-se a bateria, ligam-se os fios aos pedais e amplificadores. Num instante a sala ao fundo do corredor e à direita enchem-se de música. Atrás, a porta fecha-se. O vizinho é simpático, mas não convém abusar.

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Da esquerda para a direita, André, Ricardo, Pedro e Graciela fundaram os Dear Telephone em 2010. Ana Maria Dinis/ComUM

Um sonho de miúdos em graúdos

O sonho de fazer música juntos já o têm desde de miúdos. André, Pedro e Ricardo conhecem-se desde muito novos. “Sempre tive bandas com o Ricardo. O Pedro é um ou dois anos mais novo e pertencia a outra geração e, por isso, quando éramos miúdos nunca se proporcionou tocarmos juntos”, conta André Simão. Mas o bichinho continuou bem vivo e, anos mais tarde eis que a oportunidade de tocarem juntos finalmente chegou.

Pedro surgiu com um desafio para André e Ricardo. “Ele tinha conhecido uma rapariga que cantava, a Graciela, e vimos que podíamos tentar fazer um projeto de canções”. Tentaram e assim nasceram os Dear Telephone, com André Simão na voz, baixo e guitarra, Pedro Oliveira na bateria, Graciela Coelho na voz e teclados e, mais tarde, Ricardo Cibrão na guitarra e teclados (que veio substituir Paulo Araújo, que tocava safoxone e teclas).

O nome, Dear Telephone, apareceu por sugestão de uma curta-metragem de 1976, realizada por Peter Greenaway. Muito naturalmente, o cinema acabou por ganhar presença nas letras, na estética e nas influências da banda. “É uma arte com a qual temos uma ligação forte e a nossa linguagem tem uma relação com o cinema”, explica André.

O primeiro EP da banda, “Birth of a Robot”, saiu em 2011. Dois anos mais tarde, lançaram o primeiro longa-duração, “Taxi Ballad”. Entre “Taxi Ballad” e “Cut”, um intervalo de quatro anos. As mudanças entre o primeiro disco e o segundo não são muito evidentes.

Por um lado, perdeu-se uma marca característica dos Dear Telephone; as vozes de André e Graciela em uníssono. “Neste disco, a voz da Graciela ganhou mais preponderância do que a minha”, afirma André. Mas o músico garante que houve uma outra grande mudança. Um pouco invisível, mas que está lá.

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André, Pedro e Ricardo já se conheciam há muito, mas foi a entrada de Graciela que motivou o nascimento dos Dear Telephone. Ana Maria Dinis/ComUM

Em quatro anos, o método de trabalho e a forma como compõem canções alterou-se. “Uma coisa que sempre quisemos explorar é a ideia de fazer os discos quase como se fosse um concerto. Ou seja, o disco é praticamente gravado ao vivo”, explica. Tiveram de afinar cada detalhe da interpretação, ao pormenor, para que em estúdio pudesse acontecer essa vontade. “Quisemos, desde logo, estar o mais sozinhos possível com o nosso instrumento, explorar cada um dos nossos instrumentos ao máximo”.

A gravação do álbum demorou três dias, na Valentim de Carvalho, em Lisboa. Praticamente não há nenhuma adição àquilo que gravaram todos juntos, em banda. Tudo o que ouvimos no disco de “Cut” é como se fosse um concerto. As vozes foram as únicas coisas que precisaram de ser gravado à parte e, assim, dos três dias no estúdio, um ficou reservado unicamente para tratar delas.

André Simão, é rápido a apontar o trabalho de estúdio para “Cut” como a sua parte favorita na carreira com os Dear Telephone. “Gostei muito daquele processo, estávamos muito bem preparados para gravar o disco e o entusiasmo de ver aquilo tudo nascer talvez tenha sido o momento alto do meu trajeto”.

Com os fios todos bem ligados e a sala desarrumada está na hora de começar o ensaio. O concerto no festival Paredes de Coura está cada vez mais próximo e ainda há um alinhamento por fechar. A banda vai levar “Cut” ao último dia do festival e os detalhes precisam de ser bem afinados.

Começam o ensaio e a presença de câmaras parece destabilizar um pouco. André engana-se numa nota e acaba por parar de tocar com um sorriso envergonhado no rosto. “Enganaste-te, mas não pares”, diz Graciela.

Saltar do oito para o oitenta

“Ao vivo as coisas têm corrido muito bem”, sublinha André. O músico não esconde o prazer que tem tido ao tocar “Cut”. Mas admite as dificuldades de tocar num festival de grande dimensão como Paredes de Coura, em especial para uma banda como os Dear Telephone. Com um registo mais intimista, o hábito tornou-setocar entre paredes, no calor de um auditório. “É sempre um desafio perceber o que é que acontece à nossa música num espaço maior, num espaço menos à nossa imagem. Significa sempre sair da zona de conforto que é muito excitante para nós”.

A experiência e um percurso de duas décadas na música já ensinaram a André as diferenças entre tocar num festival e num auditório. O músico conhece muito bem os dois habitats e sabe enumerar as dificuldades que existem ao saltar do oito para o oitenta.

“Por um lado, num festival, uma grande parte do público, não está lá para ver uma determinada banda e, portanto, poderá ter os níveis de disponibilidade mais reduzidos”. Por outro lado, André afirma que é bom por isso mesmo. É uma forma de confrontar a música que fazem com outro público, com outro tipo palco e com outra filosofia de concerto.

“Somos uma banda mais intimista, que vive de silêncios, de pausas, de dinâmicas e é claro, num festival corres o risco de haver um grupo de 50 pessoas que está a falar aos berros. Num auditório, é mais fácil controlar as coisas que estão a acontecer. Mas esse descontrolo é excitação”.

Para além disso, o Paredes de Coura não é um habitat tão desconhecido quanto isso. Em 1996 André e Ricardo atuaram, com os The Astonishing Urbana Fall, imediatamente antes das Raincoats.

O reencontro com a lendária banda pós-punk deu-se no passado mês de junho, no GNRation, quando os Dear Telephone abriram a Black Box para as Raincoats. “Estivemos com elas no dia do concerto e lembravam-se de nós, de quando nos conhecemos em Paredes de Coura”.

Hoje em dia não é fácil apanhar as Raincoats, muito menos abrir para as Raincoats. A banda de Ana da Silva e Gina Birch praticamente já não toca. E abrir para uma banda histórica que já não toca é um feito para ser relembrado. “Quando és músico acabas sempre por esperar que estes tipos de momentos aconteçam e, às vezes sem planeamento as coisas acabam por acontecer”. O segredo, André revela, é manter-se no ativo com projetos vivos que “a coisa vai-se proporcionando”.

De selo nacional

Os Dear Telephone foram confirmados a 20 de abril, em conjunto com outros dois nomes portugueses, os FUGLY e os GrandFather’s House.

Este ano o cartaz do Paredes de Coura marca por ter uma forte presença de música portuguesa nos dois palcos do recinto. Ao todo, treze bandas e artistas portugueses vão-se dividir pelo Palco Vodafone e o Palco Vodafone FM.

Nos últimos anos, a música em Portgual sofreu um grande boom. André toca há algum tempo e assistiu em primeira mão a este movimento. Viu a fasquia subir, na generalidade, para os músicos nacionais. “Muitas bandas ganharam músculo e tornaram-se bandas que conseguem facilmente estar na agenda de um festival lado a lado com bandas estrangeiras, o que não era muito fácil há uns anos”.

Ter bandas estrangeiras num festival, tendencialmente, dá mais prestígio e é visto como algo melhor e maior. André atribui este fenómeno a uma noção de marketing, chamada custo de nacionalidade. “Muitas vezes as marcas tentam batizar os produtos com nomes não na língua nativa, porque as pessoas compram mais facilmente o estrangeiro do que o nacional”.

Mas, a tendência do custo de nacionalidade tem-se vindo inverter. Prova disso são os nomes que vão atuar nos palcos do recinto do Paredes de Coura. “É fixe teres um cartaz de um festival, que provavelmente será o mais mítico dos festivais em Portugal, dos mais antigos e dos mais carismáticos, com tanta presença portuguesa”.

Apesar desta presença esmagadora em Coura, o meio da música em Portugal ainda é suficientemente pequeno para ser difícil uma banda passar despercebida. “Se tiveres no meio, vais ter conversas sobre o assunto, normalmente um projeto novo significa que tu vais falar sobre ele. Olha o fulano tal fez um projeto com não sei quem e saiu um vídeo ontem, ou saiu um disco na semana passada. Já na questão do tratamento das bandas por elas serem do Norte ou do Sul, há discrepância clássicas que continuam a acontecer”.

Os Dear Telephone mostram-se humildes e admitem não ter propriamente objetivos de se tornarmos gigantes, dentro do que é possível neste retângulo pequeninho. Contudo, André ainda nota diferenças no tratamento de algumas bandas. “Em termos daquilo que é o mediatismo de uma banda em Portugal é um pouco indiferente o local de onde vem. Depois há algumas questões em que sim seres de Lisboa poderá ajudar, é lá que está a maior parte da imprensa, a maior parte dos jornalistas e é onde estão os cafés onde todas estas pessoas param e convivem”.

Pôr o telefone a tocar a toda a hora

“Cut” saiu em outubro de 2017. Depois de Coura vai estar praticamente a fazer um ano. “Já no outro disco tínhamos sentido uma receção bastante positiva e este disco acompanha um bocado aquilo que é a própria natureza da banda, que nunca será uma banda de milhões de fãs ou milhares de fãs”, sublinha o músico de 41 anos.

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O novo álbum “Cut” foi apresentado em Barcelos no Teatro Gil Vicente, em outubro de 2017. Andreia Miranda/ComUM

Depois do concerto, os Dear Telephone vão lançar um segundo vídeo do disco, para alavancar o reinício da época de concertos no inverno. Até agora, “Slit” foi o único single e a única canção a receber um vídeo-clip.

Para setembro, esperam continuar a tocar o segundo álbum. Mas vão começar a pensar mais a sério em, simultaneamente, compor o próximo disco. “Os nossos objetivos são sempre muito terra-a-terra. Não temos propriamente nenhum objetivo megalómano, a não ser ter discos e tocá-los”.

É com humildade que André volta ao ensaio depois de se enganar. Não volta a acontecer e a banda vai tocando e discutindo o alinhamento para o concerto no festival será o mais mítico dos festivais em Portugal, dos mais antigos e dos mais carismáticos Paredes de Coura. Têm de jogar com as limitações de tempo que vão ter para criar um alinhamento sólido e que cause impressão a quem os ouvir. A forma como vão terminar o espetáculo está no centro das preocupações da banda.

Com mais anos de experiência na bagagem, André e Ricardo já não são os miúdos de 18 e 19 anos que tocaram no Paredes de Coura de 1996, antes das Raincoats.

Para trás ficaram os anos em que acabar em grande significava pôr os amplificadores no máximo e a guitarra carregada de efeitos, largada num tripé ou no chão, a fazer feedback. Hoje acabar em grande tem de ser muito bem preparado e pensado. Para isso é preciso continuar a ensaiar, sem paragens.

Mas com a porta da sala de ensaios fechada. Porque o vizinho é simpático, mas convém não abusar.