O rock pode ser como andar de bicicleta: nunca se desaprende a tocar. Os smartini têm concerto marcado em Paredes de Coura, a vila onde em tempos uma jovem banda das Taipas bebeu tanta influência.

Há caminhos escuros nas Caldas das Taipas. O estúdio dos smartini parece uma base secreta, escondido no meio das árvores. É quase como se a sua música fosse um segredo mal escondido. Aqui, João Paulo Duarte abre-nos as portas do covil, onde Lourenço Mendes e Patrício Ferreira já esperam. “O Ricardo chega mais tarde, está a haver uma assembleia na câmara de Guimarães e aquilo atrasou-se”, avisa Lourenço.

Enquanto esperam, vão ensaiando os três na sala pouco iluminada por pequenas lâmpadas. O seu equipamento não é de uma banda de garagem qualquer: aqui o hobby de ter uma banda é levado muito a sério.

Soam os primeiros acordes. Trechos de novas músicas, segundo João Paulo. Nove anos depois do disco “Sugar Train”, os smartini voltaram aos álbuns com o EP “Liquid Peace”, em novembro de 2016. A “pausa para famílias” acalmou-se, e chega agora a altura de puxar pela experiência: a montra de Paredes de Coura chegou.

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Os smartini voltaram aos discos em 2016 com “Liquid State”, depois do primeiro álbum, “Sugar Train”, ter saído em 2007. Hélio Carvalho/ComUM

Grão a grão se enche um álbum

Ao lado, a família de Lourenço ouve televisão baixinho. Quase simbolicamente, a conversa vira-se imediatamente para aí. Entre 2007 e 2016, nenhuma música nova dos smartini foi ouvida. João Paulo justifica por todos. “Nós lançamos o álbum em 2007 e andamos a toca-lo até 2009, e depois cada um deu avanço às suas vidas. Já não somos novos, temos trabalhos, profissões, famílias… As famílias cresceram, e abrandamos um bocado”.

O mais novo do grupo é João Paulo, com 39 anos. A partir daí, é sempre a subir. Patrício tem 41, Ricardo 43 e Lourenço tem 48 anos. Não se torna fácil, assim, manter viva uma digressão e um manancial de datas que permita percorrer Portugal de lés-a-lés, num verão.

Mas o bichinho manteve-se vivo. Os smartini nunca foram esquecidos, e depois de um convite dos da terra para um tributo a Lou Reed e a Velvet Underground, o bicho finalmente mordeu. “Acho que foi um bocado essa alavanca que fez com que nós tívessemos voltado para tocar novamente”, explica Lourenço.

“Liquid Peace” saiu em novembro de 2016. O EP tem quatro faixas, com uma média de cerca de cinco minutos por faixa. Uma duração normal para um álbum, mas que deixa Lourenço a torcer o nariz aos cortes que fazem no processo criativo.

“Geralmente as músicas são bastante extensas, para não dizer muito extensas, e a nossa dificuldade é precisamente essa, é conseguir encurta-las. Eu faço um bocado comparação com um artista, um Picasso, que tem uma tela, e é como se chegasse ali e lhe dissessem que, para encaixar a tela num museu, tinha de lhe cortar à proporção. Seria muito complicado. E nós, no nosso caso, sentimos muito essa dificuldade”.

Assim, material para novos discos há muito. Quanto mais não seja em duração. Patrício brinca: “Não é bem a Nona Sinfonia, mas…”. Mas além de grandes pedaços que é preciso encurtar, já há perspetivas para novos trabalhos. Puzzles, que faltam montar. Em entrevista ao programa “PontoCom” da UAL Media, João disse que têm “um repertório gravado, não de temas acabados, mas de ideias, muito grande”.

Para nós, o mesmo complementa. “Tu ouviste ali três minutos de trechos que temos, e como esses três minutos temos vários. Se colocássemos tudo em cima de uma mesa, se calhar montávamos em cima de uma mesa um álbum”.

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A banda tem gravadas imensas ideias, mas para já, poucas passaram para o público. Falta “pormenorizar”. Hélio Carvalho/ComUM

Patrício assume a postura da banda como “lenta”. Fala pausadamente, quase personificando o ritmo de produção da banda. Mas deixa claro: a banda é lenta, não porque não lhes falte ideias, mas porque custa cortar no que já têm feito. “Acho que ao pormos coisas cá fora, queremo-nos sentir bem com aquilo que fazemos e sentirmos essa exigência faz com que nós sejamos uma banda com alguma dificuldade pelo tempo. E assumimos que esta exigência faz com que realmente as coisas saiam devagar. Mas assumimos isto e gostamos que quando as coisas saem, saiam bem”.

Para já, não deixam nenhuma promessa. Só intenções. As profissões são também um forte impedimento para um ritmo acelerado: Lourenço é arquiteto e dá aulas na secundária das Taipas, Ricardo é vereador na Câmara Municipal de Guimarães, Patrício é médico psiquiatra e João é empresário.

Mas entre ensaios tardios e uma visita ao estúdio do Sá da Bandeira no Porto, para gravar o “Liquid Peace”, lá saiu o EP dos smartini. A experiência de muitos anos de concertos juntos junta-se agora para a sua maior data. Volta-se ao ensaio, apertam-se as cordas, explodem as paredes.

Finalmente olhar de cima

“Paredes de Coura é um festival de tendências”. É uma frase constantemente dita por João Carvalho, o fundador do mítico festival, que caminha para a 26ªedição. É para onde muitas bandas portuguesas olham para encontrar exemplos e uma montra para um dia se mostrarem.

Dia 17 de agosto, os smartini estão na vitrine. É a maior data da banda das Taipas, que vai partilhar o recinto com Slowdive, Skepta, DIIV, Kevin Morby, Pussy Riot, entre outros. E uma data que, esperam, esteja à altura do fascínio que sentem pelo certame.

Patrício espera, pelo menos, que a banda se destaque. Algo que considera difícil na realidade atual, em que “há tanta oferta, tanta oferta, que é natural que hajam bandas que passem despercebidas ao público mais alternativo”.

Mas João Paulo fica expectante que o “fenómeno” de gostar de bandas desconhecidas que se descobrem em Coura aconteça com os smartini. “Hoje em dia, sai um cartaz e há facilidade na internet de conhecer logo o trabalho dessas bandas. Eu lembro-me que às vezes ia a Paredes de Coura e conhecia duas bandas no cartaz, e as outras ia para lá sem conhecer nada, e apanhava agradáveis surpresas. Como já aconteceu o contrário”.

A influência dos Sonic Youth na banda é óbvia, e o nome da banda de Thurston Moore causa risos quando Lourenço refere o concerto da banda como um dos que melhor se lembra no festival. Mais influências vêm à baila, como The National, PJ Harvey e Yeah Yeah Yeahs.

Paredes de Coura é quase um berço de ideias para os smartini. Faltava ir lá sem ser do público. Algo que este ano se tornou mais fácil para quem é de perto. Esta edição do festival conta com 13 nomes portugueses em 40 grupos que vão atuar no recinto principal.

A banda vai representar a zona do Minho com mais três bandas, os Grandfather’s House, os Dear Telephone e os Ermo (com quem foram anunciados, além de X-Wife e Myles Sanko). E também a zona das Taipas: já o ano passado, os This Penguin Can Fly, vizinhos da vila, passaram pelo palco Jazz na Relva.

A representação de bandas minhotas no festival é algo que deixa João Paulo entusiasmado. “Eu acho que isso é espetacular. No Minho, há grandes pólos, há cidades, onde há movimento de rock já antigo. Temos Barcelos, temos Braga, Taipas não tem nada a ver com Barcelos nem com Braga mas também tem há muitos anos na sua dimensão, e nos últimos anos tem nascido um grande movimento alternativo de música que é Guimarães. Portanto, eu acho que é uma coisa natural, já que há muito trabalho aqui no Minho”.

Falar dos This Penguin Can Fly traz recordações antigas a João Paulo. Não da banda, mas sim de um festival. “Aqui nas Taipas havia o Rock in Taipas. O primeiro foi em 1998”. Lourenço troca os papéis e faz a pergunta embaraçosa: “recordas-te?”. Devolve a batuta a João Paulo, que ilumina sobre o festival já extinto, cuja última edição foi em 2009.

“As Taipas sempre tiveram um grande movimento de bandas, se calhar com alguns altos e baixos durante os anos, mas sempre foi um pólo, e nós felizmente já fazemos parte disso há muitos anos. O Rock in Taipas era uma montra para as bandas das Taipas, e muitas bandas das Taipas nasciam para ir tocar ao Rock in Taipas. As coisas funcionavam assim, e a presença o ano passado dos This Penguin Can Fly e este ano a nossa prova que, se calhar, há muitos anos que se faz este trabalho aqui nas Taipas”.

O arquivo de bandas que passaram pelas Taipas é longo, mas o futuro do rock na região passa agora pelos smartini. Estão na ribalta, já deixaram finalmente a plateia. O festival daquela região já não existe, mas não parece que precisem dele. “Liquid Peace” e o regresso serviram para subir mais ao Norte, à praia fluvial do Taboão.

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Os smartini tocam no dia 17 de agosto no Vodafone Paredes de Coura, no palco Vodafone FM. Hélio Carvalho/ComUM

Só se dá passadas à medida das pernas que se tem

Ricardo Costa chega ao ensaio. A música não abandona o baixista, mas no meio de tantos pelouros que administra, quase se perde. Quase. Ricardo Costa é vereador do Partido Socialista para as áreas das Finanças, Património, Desenvolvimento Económico, Modernização Administrativa e Qualidade, Sistemas Inteligentes, Atendimento e Apoio ao Munícipe, Fiscalização, Contraordenações, Polícia Municipal e Desporto.

É muita pasta, mas da que está pousada na casa de Lourenço, tira apenas o baixo. Soa a música. Ensaiam “Those Lines”. Não há pausas, quase que não se olham. Está praticamente pronta para Coura.

Tudo o que tocam, Patrício vai gravando e misturando no telemóvel e no computador. É mais fácil; “Liquid Peace” foi gravado num instante, já que em casa, a banda já tinha feito gravações básicas das músicas.

Como gravar é fácil, tocar também se tornou mais acessível a quem quiser criar uma banda. Uma realidade que Lourenço, como professor, vê bem de perto.

“Eu acho que é muito mais simples e aliciante um jovem perceber que uma banda daqui perto acaba por ter algum sucesso. Acho que esses jovens acabam por trabalhar muito mais e sentir que conseguem lá chegar porque estão perfeitamente perto de uma banda que o conseguiu. Eu acho que tem a ver um bocado com o factor geográfico. Uma vez que estamos aqui num meio muito próximo, incentiva muito mais a que os jovens formem bandas. Eu já dou aulas há bastantes anos ali na Secundária das Taipas, e eu noto que todos os anos surgem bandas novas, putos que se juntam, e isso claro que é muito bom”.

A experiência leva a que cada membro dos smartini vá pensando nas dificuldades dos tempos “antigos”, mas o futuro também não é propriamente fácil. Com as idas ao estrangeiro a tornarem-se também mais fáceis, e com exemplos como os Grandfather’s House e os First Breath After Coma num panorama tão próximo, Lourenço até pondera a possibilidade da banda ir lá fora. Mas os contras são bem maiores que os prós.

“Isso seria muito, muito, muito complicado, mas não quer dizer que fosse impossível, evidentemente”. Ouve-se uma porta a fechar. Mais um filho chega a casa: uma imagem que os parece definir. Uma banda preocupada com a sua música, mas sem nunca dar passos maiores que a perna.

Crescem os palcos, cresce a responsabilidade. Mas crescer em nome não implica, num futuro próximo, tocar mais. As responsabilidades em casa são maiores para os smartini e, segundo Patrício, “tem de haver sempre um peso daquilo que são as vidas profissionais e familiares de cada um, e aquilo que seria o investimento em termos de tempo”.

Há que planear tudo entre todos. Marcar um concerto é como marcar uma futebolada com amigos. Mas quando alguém falha, é complicado arranjar um substituto. O caso aconteceu recentemente, segundo conta Lourenço. “Em todos estes anos nunca tinha acontecido, mas tínhamos um concerto marcado em que o Ricardo, o baixista, não pôde vir mesmo, e por acaso o meu filho já dá uns toques, substituiu o Ricardo, e foi tocar baixo em vez do Ricardo”.

A nova geração dos smartini já se prepara. Ao sair, Lourenço conta que o filho já tem uma banda. A música não pára. E a banda das Taipas continua a ensaiar, até às 3h da manhã.

Patrício explode na bateria. Ensaiam “Liquid Peace”. Ricardo, de fato, encosta-se à sala com o baixo; João Paulo é o mais agitado, mexendo-se e remexendo-se contra o amplificador.

Dia 17 de agosto, esperam manter a calma e a experiência no palco Vodafone FM. Apoio não faltará. Na confirmação da banda no facebook da página do festival, um fã comenta: “um ou mais autocarros a sair das Taipas para vos ouvir”.

No palco, ficam à espera. Finalmente subiram para cima dele, está na hora de acenar ao mundo de lá de cima.