La casa de papel é uma serie espanhola escrita por Álex Pina e produzida pela Antena 3. Ao estrear na Netflix a 25 de dezembro de 2017, teve um enorme sucesso mundial e tornou-se a serie de língua não inglesa mais vista do canal de streaming. O que vemos em ecrã é uma obra engenhosa que deixa o espectador num estado de ambivalência moral; estado esse que entretém, choca e faz refletir.
A história do assalto à Casa da Moeda espanhola é narrada por Tóquio (Úrsula Corbero) e constituída por imagens do presente e do passado em forma de flashbacks. A grande premissa do plano do Professor (Álvaro Morte) gira em torno de que tempo é dinheiro. Assim, o grupo consegue ficar dentro da Casa da Moeda por 11 dias e imprimir cerca de 984 milhões de euros.
As personagens apresentam uma certa dicotomia, com Alex Pina a apostar em construções complexas. Eles não são bons nem maus; não são vilões nem heróis. O realizador não criou figuras perfeitas com apenas uma faceta, mas antes personalidades com vários ângulos. Julgá-las acaba por depender da perspectiva do espectador, que dá por si a questionar todas as ideias pré-concebidas. Cada ator interpreta uma personagem que é um puzzle em si mesma, e funciona, também, como puzzle para o plano.
Destaco El Professor, de representação de Álvaro Morte, o cérebro do ataque. Com densidade psicológica muito peculiar, podemos apontá-lo como tendo um certo grau de transtorno obsessivo compulsivo. Acredita num dado idealismo, por desejar garantir a moralidade do assalto: não quer que ninguém morra; quer evitar ferir alguém; e, para ele, não está a roubar nada a não ser o tempo. Por isso, encara o assalto como um trabalho justo, em que quanto mais imprimem, mais ganham.
O telespectador sofre uma ambivalência moral, sabe que o que eles fazem é errado, mas ainda assim quer que o plano seja bem-sucedido. Isso só acontece porque a série está construída de forma a que tenhamos empatia com os criminosos. Vemos o seu lado humano e somos seduzidos pela relevância das suas motivações: Moscovo (Paco Tous) e Denver (Jaime Menéndez Lorent) querem uma vida melhor e recomeçar do zero; Berlim (Pedro Alonso) quer viver com dignidade o pouco de vida que lhe resta; Nairobi (Alba Flores) quer recuperar o filho e o Professor quer honrar todo o esforço do pai.
A montagem da série, com recurso aos flashbacks, é também altamente inteligente. É através deste meio que conhecemos as facetas boas dos bandidos e nos identificamos com eles. Todos têm contextos disfuncionais e histórias problemáticas. Percebemos que se perderam pelo caminho, como qualquer um se podia ter perdido.
O mais importante é que La casa de papel não se limita a ser uma série de entretenimento. A produção veio mostrar que o audiovisual pode e deve ter um papel importante nas críticas sociais e na construção da realidade. As críticas tecidas pelo meio da trama, umas diretas e outras mais subtis, vão do sistema de ensino, aos estereótipos da homossexualidade, às ideias pré-concebidas do perfil de mulher vítima de violência doméstica.
Os monólogos de Tóquio, por via da narração que nos faz da história, ressaltam muitas vezes estas críticas e outras. Disso é exemplo a memorável linha: “A comunicação tem poder, a polícia não ganha o suficiente para se sujeitar a tudo, e o dinheiro é apenas papel impresso.”
Ainda assim, a medalha de ouro na categoria ‘’críticas’’ vai para a crise política. É sobre esta premissa que a série se constrói com o objectivo máximo de criticar o sistema vigente e fazer reflectir sobre as regras e valores da sociedade.
No que toca a guarda-roupa e figuração, um elemento de destaque de La casa de papel é a máscara usada pelos assaltantes. A cara de Salvador Dali que usam para esconder a sua identidade, pode ser interpretada como uma referência ao grupo annonymous, por também utilizar máscaras da personagem Guy Fawkes das HQs e do filme V for Vendetta. A imagem deste personagem é usada na vida real como símbolo de revolução e do anarquismo.
Os sons e a música também estão de acordo com o tema e com a ação. Num episódio, o Professor e Berlim cantam Bella Ciao. De autoria desconhecida, tem origens nos protestos contra a I Guerra Mundial. Posteriormente, a canção foi símbolo da resistência contra o fascismo, popularizando-se ainda de novo durante a II Guerra Mundial. Este é apenas um exemplo das significações contidas em cada elemento que ajuda a contar a estória da série de Alex Pina.
Apesar das cores serem escuras, com um tom sombrio e esbatido, há uma que contrasta e sobressai: o vermelho. Desde o primeiro episódio vemos sempre, ou quase sempre, esta tonalidade muito presente. A roupa dos assaltantes, megafones e acessórios dos uniformes dos estudantes, entre outros detalhes, são alguns exemplos. Na psicologia, a cor vermelha está associada ao sangue, ao fogo e à revolução. O que, neste caso, faz todo o sentido, pois os protagonistas lutam por liberdade e desejam contornar o sistema.
No geral, a série está muito bem conseguida. Os planos e ângulos utilizados envolvem o espectador e deixam-no ansioso para a chegada do próximo episódio. A tentativa de prever o que vai suceder acaba muitas vezes por esbarrar numa inesperada surpresa.
Em suma, o argumento de Alex Pina é muito bom. Sai do ‘’cliché’’, tem muitas referências e simbolismos e quebra estereótipos. Acaba por ser uma serie muito engenhosa e interligada, não há factos e cenas soltas só porque sim, tudo tem um porquê e um sentido durante toda a trama.
Título Original: La casa de papel
Realizador: Álex Pina
Argumento: Álex Pina
Elenco: Úrsula Corberó, Itziar Ituño, Álvaro Morte, Alba Flores, Paco Tous, Miguel Herrán, Jaime Lorent.
Espanha,
2017