Foi no passado ano letivo de 2017/2018 que O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago, começou a integrar o Plano Nacional de Leitura do 12º ano, tomando o lugar de Memorial do Convento. O escritor convida-nos a refletir sobre a realidade portuguesa e opressão salazarista entre os anos de 1935 e 1936.

O título denuncia logo o desfecho da obra, dando relevo a acontecimentos importantes alusivos à personagem principal como “O Ano”- 1936, e “Morte”- o falecimento de Ricardo Reis. No entanto, põe-nos também a par do contexto europeu assolado por regimes e ideologias fascistas e opressivos, dos quais Reis é vítima, tendo sido interrogado pelo maior órgão repressivo português – a PIDE – onde qualquer pessoa poderia ser considerada suspeita.

A obra inicia com o regresso de Ricardo Reis a Lisboa, a dezembro de 1935, após ter estado 16 anos no Brasil. A razão pela qual voltara foi o telegrama que Álvaro de Campos,outro heterónimo de Fernando Pessoa, lhe enviou a informar que este tinha falecido. Este pareceu ser um bom motivo para Reis voltar à pátria e, mal se alojou no hotel Bragança, tomou a iniciativa de ir ao cemitério dos Prazeres, onde Fernando Pessoa foi sepultado.

José Saramago

No dia a seguir à sua chegada e após deambular pelas ruas de Lisboa, Reis regressa encharcado, devido à janela que tinha ficado aberta no quarto. Isto originou o primeiro encontro com Lídia, a “criada de hotel“. Lídia, de cerca de 38 anos, mulher fisicamente atraente, segundo o poeta, simboliza a vida e os prazeres terrenos. Sendo, portanto, a personagem que poderá levar Ricardo Reis, adepto de que “sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo“, a viver a verdade humana. Porém, Reis é preconceituoso e não alimenta esta relação, pois tem a noção que Lídia não possui um estatuto semelhante à sua, de homem superior e rico.

Então, ao conhecer igualmente no hotel Bragança a outra personagem feminina que compõe o triângulo amoroso, Ricardo Reis debate-se num dilema de qual universo escolher. Marcenda é, pois, o nome da segunda figura que fascina Reis assim que entra pela porta do Bragança. Na verdade, à medida que convivem, parecem-se um com o outro na inação e na tentativa de fuga da realidade: Reis num alheamento constante e Marcenda recusando enfrentar a vida, vivendo às custas do pai e com um braço imobilizado. Assim, Marcenda, representa a “morte” e a impassividade. Por outro lado, Lídia representava a “vida” e aquela que o fazia sentir alguma humanidade.

Fernando Pessoa mostra-se uma personagem imperativa no mundo imaginário da obra. Após ter falecido no dia 30 de novembro de 1935, são-lhe “concedidos” nove meses para ficar em Lisboa como fantasma. No entanto, só passado um mês é que se encontra com Ricardo Reis,e é neste primeiro encontro que Pessoa explica que os nove meses se assemelham aos nove meses da gravidez – quando existimos, mas ainda não somos reais e não desempenhamos as funções de um ser humano. Apesar deos encontros entre os dois não serem frequentes, Fernando Pessoa era para Ricardo Reis a sua única companhia em Lisboa, a quem podia confessar as suas aventuras e também dúvidas. É no fim destes oito meses que Ricardo Reis acompanha Pessoa para o mundo dos mortos.

Não será necessário referir que José Saramago tem um estilo próprio de escrita complexo, que obriga o leitor a uma maior atenção. No caso de O Ano da Morte de Ricardo Reis, a escrita apresenta um cariz de oralidade que é percetível através da leitura mais fluida. Em termos da pontuação, esta é pouco convencional, como vemos no uso da vírgula que substitui outros sinais de pontuação. Assim, a maior dificuldade para o leitor será habituar-se à ausência do indicador de mudança da pessoa no discurso, devido à ausência de verbos introdutórios da fala e à mudança de linha, quando as diferentes personagens intervêm.

Saramago usa também a simbologia e, ao longo da história, o leitor vai encontrando um certo padrão em relação a alguns destes símbolos. No entanto é importante salientar a chuva que aparece com dupla simbologia no romance. Simboliza a união dos opostos (Lídia e Ricardo Reis), mas também a ausência da vida, ao cobrir de cinzento a capital portuguesa e todo o país, sob pena da repressão ditatorial do Estado Novo.

O Ano da Morte de Ricardo Reis é uma obra completa, na medida em que não só nos oferece momentos de romance, drama, intriga e até mesmo de riso devido às intervenções irónicas do autor, mas também fornece alguma cultura geral devido aos relatos de muitos acontecimentos reais passados na Europa e em Portugal. Menos não era de esperar de José Saramago, por isso é aconselhável a todos a leitura deste romance que proporciona outra visão daquele que era Portugal no ano de 1936 e para descobrirem as restantes peripécias de Ricardo Reis.