Tentando ser amigo, vou começar por dar um conselho: se és fã de House of Cards e ainda não viste a sexta e última temporada, não te dês ao trabalho. Não te incomodes. Vai antes ver se as tuas facturas estão todas direitinhas no e-fatura. Lê uma acta do Conselho Geral da Universidade. Vai a uma RGA (a estas devias mesmo ir). Qualquer coisa é melhor que perder tempo com o final de House of Cards.
Porquê? Ora imaginem que Game of Thrones, cuja última temporada nos chega em 2019, encerra a sua história com um final à Lost – a tela do enredo fica tão complexa que, sem tempo para a resolver, descobre-se que afinal aquela malta estava toda morta no purgatório, à espera que chamem o número da senha. Ou que não é bem isso, mas que fica toda a gente a achar isso, porque a saída possível para a complexidade do enredo só pode ser algo assim. Imaginem o amargo na boca por se ter estragado uma das melhores séries de sempre.
O final da última temporada de House of Cards deixou esse amargo na boca. E uma daquelas nódoas chatas no tapete da Sala Oval e nos currículos dos criadores e guionistas da série.
Vamos por partes. House of Cards foi uma das criações que ajudou a colocar a Netflix no lugar em que está hoje. Liderada por Kevin Spacey na pele da forte personagem de Frank Underwood e com actores secundários da qualidade de Robin Wright, Kate Mara, Michael Kelly, Constance Zimmer e Diane Lane, entre muitos outros, a série demorou pouco a levantar voo e, durante cinco temporadas, pareceu absolutamente inabalável perante todos os contratempos que surgiam.
Não resistiu, no entanto, ao início do movimento #MeToo e às acusações de assédio e abuso sexual feitas a Spacey por quase duas dezenas de pessoas. As filmagens pararam e Spacey ficou em casa. A temporada passou dos tradicionais 13 episódios para apenas oito. E agora? Continuava a ser a vez de Claire Underwood, como a própria diz, no final da quinta temporada?
Nem por isso.
House of Cards nunca ultrapassa totalmente Frank Underwood. O fantasma está presente em toda a temporada, mas nunca aparece. Dá a ideia que a série e os seus produtores querem continuar à volta de Frank, mas a Netflix não quer Kevin Spacey representado de forma alguma. Não há fotos nem imagens do presidente morto. Apenas gravações que Frank deixou a um Doug que passa a temporada perdido e que vão sendo ouvidas ao longo dos episódios, tendo tanta força que quase derrubam a presidente Claire.
As tentativas de compromisso entre estas duas vontades trazem constante confusão para quem vê, ao ponto de ser mais confortável parar o episódio e limpar o pó à casa do que continuar a assistir. Com as outras temporadas, só havia uma forma de desfrutar de House of Cards: uma maratona de 13 horas num fim-de-semana ou num feriado.
Greg Kinnear e Diane Lane são acrescentados ao elenco como os poderosos irmãos Sheperd, com dinheiro e ligações que os tornam bem mais poderosos que a presidente. Mas nunca ficamos bem a saber de onde surgem estas personagens, que aparecem logo no primeiro episódio como se já estivessem em House of Cards desde a primeira temporada, já com história suficiente para ter compromissos com Frank e ódio a Claire. A calcular pelo conhecimento que temos de tudo isto, os encontros devem ter acontecido numa das muitas casas de banho da residência da Casa Branca.
Doug passa o tempo a defender o legado de Frank – boa ideia, malta, já ninguém se lembrava que ele existia! – e a procurar um testamento perdido. Sim, leram bem. Não vale a pena falar mais sobre isso.
Outras personagens aparecem para desaparecer de novo. Abrem-se novas linhas narrativas, de grande importância, para depois as abandonar. Por exemplo: uma crise ambiental traz uma aplicação que existe para captar dados dos utilizadores para que uma entidade privada consiga controlar as eleições. Há eleições nesta temporada? Não. A app é descoberta pelas autoridades? Não. A app é apagada pelos seus donos? Não.
Esta temporada, os produtores parecem ter mudado de ideias e achar que quanto mais coisas acontecerem, importem elas ou não para o final, o público vai achar que todas as personagens são grandes manipuladores capazes de substituir Frank. O que acontece é que parece que toda a gente trabalha na Casa Branca de Trump e demora dias a descobrir onde é que são os interruptores de cada sala. Não sei como é possível pôr personagens a lutar de forma mais incapaz e privilegiada.
Exemplo disso é o suposto grande plano de Claire, quando se ausenta semanas a fio dos olhos públicos e rebate a história de um aborto com a demissão de todos os ministros, chamando a cena apenas mulheres para fazer a substituição, irritando-se depois com o facto destas não serem apenas fiéis serventes dos seus esquemas mas quererem mesmo fazer o seu trabalho. Senti-me a rever Morangos com Açúcar e os dilemas do Colégio da Barra.
Agora, vamos lá falar da cena final de uma forma muito resumida. Ficamos a saber que foi Doug Stamper a matar Frank quando este estava a caminho de matar Claire. Stamper, no meio de uma conversa demasiado sem nexo para chegar a ser tão tensa como a banda sonora, corta Claire no pescoço com o abridor de cartas de Frank enquanto os Serviços Secretos devem todos ter ido fazer uma sessão numa sala escura para falar com o espírito de Frank Underwood. E Claire esfaqueia Doug e asfixia-o até à morte.
Nesta altura da minha vida, eu estava a fazer o jantar enquanto vi a cena final. Virando um e outro bife de frango na frigideira, fui vendo tudo aquilo acontecer como quem vê o Benfica a perder 3-1 contra o Moreirense ou o título de Fórmula 1 a fugir às mãos da Ferrari mais uma vez. A cena final acaba e, logicamente, passam os créditos. A minha única reacção foi virar-me para os bifes e perguntar-lhes o que raio era aquilo que tinha acabado de ver. Enfim. Usei tanta lógica nesse momento como House of Cards em toda a sexta temporada.
Resumo: são oito horas confusas e incoerentes sem qualquer ideia de como encerrar a história.
Apesar disto, a performance de Robin Wright não deve ser desprezada. Recusando-se a ir com o rebanho e empenhando-se em fazer o melhor possível com o ridículo enredo que os guiões lhe apresentavam, a actriz encontrou uma personagem forte dentro de Claire Underwood, não deixando a parvoíce que dominou a produção roubar-lhe isso. Só é pena é que só a tenham deixado fazer isso numa temporada que não devia existir. Porque alguém devia ter tido cabeça para dizer, no final da 5ª temporada, que aquele fim estava óptimo. Até por respeito à mini-série original, da BBC.
Um testamento perdido. Uma morte fora do ecrã de uma personagem que parece estar sempre lá. Uma zanga entre irmãos. Uma conspiração. Jornalistas que continuam sem conseguir fazer mossa. Um mistério que dura até ao fim. Uma cena final que mistura Shakespeare com a embriaguez de um guionista perdido e embriagado pelo sono às cinco da manhã.
A minha única pergunta é: como é que a TVI ainda não comprou a sétima temporada disto?
Título Original: House of Cards – The Final Season
Argumento: Beau Willimon
Realização: David Fincher
Elenco: Kevin Spacey, Michel Gill, Robin Wright
EUA
2018
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