Na Memória dos Rouxinóis é o quarto romance escrito por Filipa Martins. O livro não só nos transporta para a realidade de um matemático que encomenda a sua biografia antes de morrer, como também nos permite mergulhar num enredo arrebatador com uma narrativa sedutora e um domínio lexical brilhante.

A obra tem a sua primeira edição em abril de 2018 e pertence a uma autora que está inserida na nova geração de escritores portugueses. Este grupo de autores assume as suas próprias revoluções: a luta pela imaginação, a independência face a correntes e a ideologias, a vontade de cosmopolitismo, o direito à diferença da abordagem literária, a experiência da total liberdade e muito mais. É, portanto, neste panorama que esperamos encontrar e incluir Na Memória dos Rouxinóis.

Filipa Martins

O romance conta-nos, numa visão extremamente feminina, embora todo o enredo se debruce sobre os homens, a história de Jorge Rousinol, matemático galego, que defende o esquecimento como melhor método de avaliação e tomada de decisões. Contudo, no início da trama, verifica-se uma atitude muito controversa por parte de Rousinol, ao resolver escrever uma biografia, visto que vai contra a sua ideologia de reconhecer o oblívio como tática predileta.

O matemático é um teórico excêntrico que expõe as suas teorias há medida que a ação evolui, e uma delas é reiterada vezes sem conta. Esta argumenta que não há melhor forma de denominar alguém se não com um número, pois os números são unidades, únicos e indivisíveis. Devemos atentar que na verdade uma pessoa é única e indivisível, daí que essa definição estar correta. Esta lógica relembra um pouco a falácia da bola de neve, ou seja, a argumentação que parte de uma afirmação encadeia-se noutras proposições, que levam a uma conclusão que pode parecer absurda. Este momento vem corroborar uma vez mais a meditação e a exposição exímia da autora.

A ação está dividida em três espaços temporais, o passado do biografado, o passado do biógrafo e o presente de ambos. Este último é o fio condutor que une as duas personagens e confere à narrativa uma certa robustez. Filipa Martins intercala e permuta os tempos de uma forma excecional, levando cada um até ao fim, não terminando a narração de nenhum deles precocemente em relação aos restantes.

O romance é cativante por proporcionar a leitura de um tipo de escrita inovadora e surpreendentemente leve, todavia com uma sensualidade invulgar e despida de qualquer tipo de pudor. Os diálogos intrigantes e apaixonantes incitam no leitor o desejo da chegada do próximo momento de conversação das personagens.

A misticidade do número sete, a paixão pelos números, sendo os primos os mais especiais, é também um fator de fascínio que o livro possui. A certa altura, Rousinol promove-nos um encontro com uma das suas dificuldades. O matemático tem um pequeno percalço quando se depara com a escrita de uma carta. Ele julga que as palavras são ambíguas e o seu exercício é muito desgastante. Levando, no final, em consideração, que “nunca se viu um número irónico”.

Este pequeno episódio demonstra-nos uma antítese digna de ser apreciada, visto que a autora nos leva para um campo em que os números são mais simples e mais diretos. Porém, estamos na presença de um romance, uma narrativa que tem no seu cerne palavras que podem sempre transportar inúmeros significados. A conjugação dos conceitos aqui presente é notável, demonstra inteligência e reflexão nas conceções e visualização da obra como um todo, e não só como capítulos fragmentados sem destreza na sua fluidez.

O desenlace do enredo é inesperado, no entanto conseguimos concluir que a biografia de Rousinol não serve como testemunho da existência de alguém, mas sim uma confissão e absolvição. Assim, a personagem, ao longo da obra, acaba por justificar o pedido inicial do relato da sua vida.