Destacando-se inequivocamente pela força e densidade emocional, Hounds Of Love é capaz de agradar, agarrar e envolver o ouvinte numa primeira escuta, conseguindo tornar-se cada vez melhor quantas mais vezes for ouvido. O quinto álbum de Kate Bush, lançado em 1985, assume-se, assim, como a sua maior obra até à data.
Este é o quinto álbum de estúdio da britânica Kate Bush, uma das maiores figuras femininas no mundo da primeira arte, abençoada com uma das maiores vozes do século passado. Carismática, inovadora, criativa, talentosa, compositora e performer, Bush tem uma discografia marcante e singular.
Resultado de uma posição corajosa e afirmativa face ao seu estatuto de celebridade, a cantora tirou tempo para si mesma após o lançamento e promoção do álbum anterior, The Dreaming. Assim, num verão relaxado, construiu o próprio estúdio num celeiro perto da casa da sua família, onde começou a trabalhar no novo projeto em 1984, surgindo no ano seguinte Hounds of Love.
O disco está dividido em duas partes distintas, sendo a primeira, Hounds of Love repleta de canções notáveis, e a segunda, The Ninth Wave, conceitual, única, e mais experimental e abstrata. O álbum começa com “Running Up That Hill”, que tem batida marcada, melodia cativante e letra forte, evoluindo progressivamente até culminar num espectro de camadas de vozes e rasgos de guitarra arrepiantes. Aqui, cada palavra é preciosa. “You don’t want to hurt me, but see how deep the bullet lies.” “Is there so much hate for the ones we love? Tell me, we both matter, don’t we?”
Não abrandamos com a segunda canção “Hounds Of Love”, que curiosamente usa uma sample retirada do filme A Noite do Demónio, dos anos 50, em que se ouve “It’s in the trees! It’s coming!” Com um ritmo frenético e com as cordas vibrantes em staccato, a faixa fala do medo de nos entregarmos, e de viver no debate da problemática relacionável a todos: deixamo-nos ir ou não? “I’m ashamed of running away from nothing real. I just can’t deal with this.”
“The Big Sky” contém uma batida agora acompanhada por guitarra, piano e baixo. Nota-se alguma influência no ritmo africano, até na liberdade da voz de Kate Bush. A música vai ficando mais e mais louca e envolvente, acabando com gritos estridentes, seguros numa base sonora ritmada e contagiante.
Até agora estamos, no disco, envoltos por uma energia comprometida, conseguida com mestria e sucesso, adornada com sons inovadores e potentes. Mas a genialidade do álbum passa pela mudança que experienciamos na canção seguinte.
Entramos em “Mother Stands for Comfort”, no momento mais negro do primeiro lado da obra, onde primeiro ouvimos vidros a partir, como um aviso de que o álbum agora é diferente. Depois, ouvimos: “She knows that I’ve been doing something wrong. But she won’t say anything”. A canção fala-nos da impermeabilidade e incondicionalidade do amor de mãe, de um modo quase tenebroso. Toda a experiência sonora da canção é absolutamente estrondosa, desde a performance vocal da artista, ao uso cuidado e criterioso dos sintetizadores, reforçados com os samples e uma batida desconfortáveis, com o piano a bailar em cima de tudo. Este é um dos momentos altos do disco.
“Cloudbusting”, inspirada em A Book Of Dreams, de Peter Reich, que curiosamente também foi motivo de inspiração de Birdland, de Patti Smith, no anos 70, é o quarto single do disco. Por muito boa que seja, e é inegável que é uma canção de qualidade de Pop barroco, surge entre dois dos melhores momentos do álbum, e não está no mesmo patamar criativo, ambicioso e delicado, o que lhe retira alguma força.
Chegamos, então, com “And Dream of Sheep”, ao início da segunda parte do álbum. O arpejo ao piano, prontamente acompanhado de um lindo verso, cantado de forma sublime e delicada, é arrepiante, e surge como uma pequena luz a brilhar. A narradora participante desta obra conceitual dentro do trabalho maior é apresentada como estando perdida no mar.
“They take me deeper and deeper” até chegarmos à canção seguinte, “Under Ice”. Segundo, Kate Bush, a faixa refere-se ao sonho da personagem que, com um ambiente negro e tenebroso, tão majestosamente perturbador, é digno de crédito. O tema acaba quando ouvimos “Wake up”, e saímos assim do primeiro sonho.
Em “Waking The Witch”, caem os acordes do piano que pingam na nossa cabeça. Ao mesmo tempo, ouvimos vozes a chamarem a personagem, a tentar acordá-lo. E a música é-nos tão intrínseca e tão experienciada nas profundezas da nossa pessoa enquanto ouvintes, que nos identificamos com a ideia de submersão ao oceano e com o estado da mulher que está perdida na água.
“Watching You Without Me” surge quase que como uma alucinação, em que a personagem não consegue comunicar com o seu amado. A canção transmite uma sensação de desespero e frustração, e a letra inquietante e triste é cantada com grande expressividade. No fim da faixa, a voz de Bush surge fragmentada a chamar por quem não a pode ouvir.
E com “Jig Of Life” e “Hello Earth”, o álbum atinge o ponto mais brilhante, o exponente máximo da sua genialidade, criatividade e força. O ritmo acelerado e até dançante da primeira corresponde ao ambiente de confrontação a que a narradora a afogar-se no mar é submetida pelo seu “eu” futuro. O “never let me go”, cantado com uma voz arranhada e rouca antes da primeira ponte da faixa, é capaz de provocar três ou quatro segundos de uma fricção assustadoramente assoberbada ao ouvinte.
Em “Hello Earth”, esta mulher que está a tentar ser salva pelo seu subconsciente e por uma equipa de resgate, que ouvimos no fim da música anterior, só consegue ouvir as suas vozes ao longe. A letra é altamente subjetiva e abstrata e torna-se difícil perceber qual exatamente é o desfecho deste tema. A personagem parece ser completamente afogada, sendo apenas capaz de ver a Terra. Todo o processo evolutivo da música, construída com duas paragens abruptas para um coro de ópera, transmite uma sensação de submersão mas, ao mesmo tempo, de suspensão num ambiente misto de sensações, sentimentos e emoções.
No entanto, a canção final, “A Morning Fog”, faz crer que a narradora sobrevive. A faixa surge depois do mais negro dos minutos em todo o álbum, como um raio de esperança. A mulher parece sobreviver e, depois de tudo, é capaz de apreciar a vida de uma maneira muito mais genuína, dando-lhe o devido valor. “I’ll tell my mother. I’ll tell my father. I’ll tell my loved ones. I’ll tell my brothers. How much I love them”.
E assim acaba todo aquele filme de terror e todos aqueles pesadelos experienciados numa nota positiva. Hounds Of Love prova ser uma obra brilhante, com uma experiência brutal, que para sempre reforçará Kate Bush como a artista carismática, brilhante, sensível e marcante que é.
# ARQUIVO | Hounds Of Love: dos singles ao mais belo dos filmes de terror
10/10
Álbum: Hounds Of Love
Artista: Kate Bush
Data de Lançamento: 16 de setembro de 1985
Editora: Noble And Brite
Julho 3, 2022
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